V de Vingança (2006) - Review
Cultura po(p)lítica
No cenário de globalização cada vez mais intensa que consagra a efemeridade da produção cultural, poucos são os filmes que conseguem quebrar as barreiras de seu mercado e extender sua influência à outros campos sociais. Talvez o maior exemplo recente seja "V de Vingança" (V for Vendetta), adaptação da graphic novel homônima de Alan Moore e David Lloyd. Dirigido pelo estreante James McTeigue e produzido por Joel Silver ("Predador", 1987)e pelos irmãos Wachowski ("Matrix", 1999), o filme lançado em 2006 foi um sucesso absoluto de bilheteria que dividiu as opiniões do público e crítica. De um lado, aqueles que encararam o filme como corajoso e instigante, e de outro os que viram a obra como rasa e extremista.
Independente de opiniões, a verdade é que ainda em 2013 o filme se faz presente tanto nos discursos como nas imagens de movimentos sociais ao redor do mundo. Sobretudo com as máscaras do conspirador britânico Guy Fawkes, que serviam de rosto para o personagem "V" (Hugo Weaving) e foram adotadas como símbolo revolucionário por toda uma geração jovem, prejudicada pela opressão econômica e social de seus governos. Em um cenário onde os jovens se mostravam acomodados e entorpecidos pela cultura pop ao seu redor, o filme se diferenciou e estimulou grande parte de seu público a rejeitar a apatia política para encenar práticas de resistência contra qualquer Estado que busca silenciar os dissidentes. Mas como exatamente se deu esse fenômeno?
Para entendermos melhor o impacto da obra cinematográfica, devemos começar pela história de Alan Moore, adaptada com maestria e modificações pontuais pelo roteiro dos Wachowski. Uma dessas mudanças é o período onde se passa a história, alterado de 1990 para um futuro próximo distópico em 2020. São tempos de guerra global, e o Reino Unido é sufocado por um regime fascista, que envia prisioneiros políticos, homossexuais e todo tipo de "indesejáveis" para campos de concentração. Evey Hammond (Natalie Portman) trabalha na emissora estatal, e um dia é surpreendida em violação do toque de recolher por membros da polícia secreta. Antes que os policiais a estuprem, Evey é salva pelo vigilante conhecido como "V". O mascarado a leva para testemunhar a destrução do Palácio da Justiça, fato manipulado pelo governo para esconder o ataque à um de seus principais símbolos de poder. "V" toma para si a responsabilidade pelo ataque e promete para o povo que em exatamente um ano ele destruirá o Parlamento, e assim Evey começa a testemunhar a luta de V contra a tirania e os agentes que o deformaram no passado.
Na primeira metade do filme o efeito evocado é o de repressão e medo, sensações estimuladas tanto por meio da narrativa em si quanto pela estética da obra. Ao nível de história, logo no começo o público estabelece uma identificação com Evey, personagem que serve de objeto para a projeção da própria identidade da audiência no filme. Ao vê-la aterrorizada, literalmente, "nas mãos" do governo em uma cena construída em um beco escuro para causar claustrofobia e nojo (por closes nos dentes sujos do policial e no ato de abaixar as calças), o público pode participar diretamente do medo da personagem. Assim como ela, somos resgatados literalmente e simbolicamente por V, que representa uma idéia. E igual à Evey, somos relutantes à essa idéia no começo, pois carregamos em nós a disciplina com o qual fomos sempre doutrinados.
Firmada essa identificação, começa o trabalho do filme para desenvolver a convicção da personagem e do público. A transposição da mensagem opressora e contestadora de Alan Moore para as telas obriga o diretor McTeigue a fazer uso de diversos recursos estéticos que ressaltem visualmente o argumento escrito. As cenas de luta são muito bem produzidas e coreografadas, por vezes homenageando um estilo pulp que relembra ser esta a adaptação de uma história em quadrinhos. Só que reduzir a estética do filme à ação pontual que o torna divertido é um erro. Seu verdadeiro poder está nas cenas escuras em espaços apertados (como o beco do início), enquadramentos propositalmente claustrofóbicos que passam uma sensação constante de confinamento, restrição e repressão. Os closes extremos no rosto gigante do chanceler Sutler (John Hurt, em performance magnífica) remetem ao "Grande Irmão" imaginado por George Orwell e alimentam uma atmosfera de vigilância que catalisa ainda mais o sentimento de opressão.
O ponto alto da mistura entre a linguagem das câmeras e do texto é o aprisionamento de Evey, que também é o ápice do trabalho poderoso de Natalie Portman. Não se pode comentar muito sobre esse ponto sob pena de entregar um dos segredos mais inteligentes do roteiro, mas é possível analisar as cenas de tortura brutal da personagem sob um ponto de vista narrativo. Considerando que a lealdade do público está com Evey e não com V, os atos violentos do anarquista contribuem para a tensão crescente do filme. Ainda assim, Evey prefere sofrer mais abusos do que entregar qualquer informação sobre V. A ferocidade gráfica dessas cenas só é aplacada por flashbacks de Valerie (Natasha Wightman), sobre quem Evey lê em cartas repassadas pelo prisioneiro ao lado, e o contraste da realidade na prisão com cenas espaçosas, coloridas e bem iluminadas na imaginação de Evey mantém um fio de esperança que alimenta constantemente o desenvolvimento da personagem.
Dessa forma, James McTeigue manobra a capacidade das cores em impactar o estado mental do público. A cor mais proeminente em "V de Vingança" é o verde escuro, representando a desesperança e o medo, mas estes sentimentos são constantemente contrastados com pinceladas laranjas (como o uniforme de presidiária de Evey), que estimulam e excitam à um nível subconsciente, não evidente à primeira vista. A harmonia dessas cores funciona como elemento emocional poderoso, e o resultado é uma atmosfera colorida por medo e ansiedade, contra a qual o público é provocado a lutar, perturbado pela mistura dessas sensações.
Esse desejo libertador é alimentado pelo próprio V, em uma performance brilhante de Hugo Weaving (o agente Smith de "Matrix"). Embora todo o elenco seja notável, desde o início é claro o acerto na escolha de Weaving para o papel, não apenas por sua disposição para abrir mão de sua própria imagem e permanecer sempre mascarado, como também por seu talento cenográfico que possibilita a expressão de seu personagem exclusivamente pelas palavras. Portanto, V captura a aura estética do filme no tom e ritmo de sua voz, dando uma grande dimensão à seu discurso, que transborda em intensidade e exigência. Aliada à seus movimentos fluidos e orquestrados, bem como uma expressão permanentemente congelada nas feições debochadas de Guy Fawkes, a eloquência de V inspira confiança e gera um desejo de libertação estática que transpõe as fronteiras da pura e simples racionalidade.
Todos esses elementos convergem em um filme que, apesar da densidade de sua mensagem, retém o seu caráter de blockbuster e representa bem tanto o gênero de filmes políticos quanto filmes de ação. Seu maior mérito é justamente esse, levar o caráter questionador da obra de Alan Moore para um público muito mais amplo, numa embalagem bonita e conteúdo de fácil digestão. É evidente que nem todos interpretarão a sua mensagem da mesma forma, pois o processo de formação da opinião utiliza elementos anteriores da convicção, à exemplo de posicionamentos políticos. De qualquer forma, "V de Vingança" sucede tanto como entretenimento quanto à nível intelectual, convidando intensamente à reflexão e levando ao rompimento de uma inércia política em favor da luta contra as afrontas à democracia.
O que em 2006 era uma crítica ao governo Bush transpôs as barreiras de sua própria criação para incorporar todo um ideal libertador e inspirar multidões assim como seu protagonista, provando definitivamente que a cultura pop moderna não serve apenas para alienar, mas também para formar uma consciência política. E é por isso que o transgressor "V de Vingança" é uma obra singular nascida no seio de Hollywood, que merece um lugar no panteão dos filmes mais importantes da Sétima Arte na última década.
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