A bela mentira de Michael Stern
É impossível viver no mundo moderno sem ao menos ouvir falar de Steven Paul Jobs. O inventor-empresário revolucionou a relação entre homem e tecnologia, aproximando os indivíduos dos eletrônicos cotidianos ao fazer da Apple um paradigma da criatividade e do progresso tecnológico. Seu lema primordial era "pense diferente", algo que o diretor Joshua Michael Stern aplica na prática ao tentar uma abordagem irreverente à cinebiografia de Steve Jobs, iluminada por uma direção de arte competente. Mas o inventor também dizia que "design é função, e não forma", algo que o diretor parece ter ignorado ao apoiar o seu filme na aparência estética e na devoção à figura de Jobs, dando pouca atenção à tudo aquilo que realmente compôs a substância transformadora de um homem genial, porém errático, em ícone pop cultuado por multidões.
O desprezo de Stern ao funcionalismo em favor do culto ao ícone ficam evidentes logo nos primeiros minutos de projeção, quando acompanhamos o Steve Jobs de Ashton Kutcher em um travelling pelos bastidores da apresentação de sua mais nova invenção. A trilha sonora comovente de John Debney se esforça em sugerir que ali não está um homem, mas sim um messias prestes a revelar a próxima cria divina. Na verdade, o produto em seu bolso revela-se o primeiro iPod, mas antes mesmo que Jobs anuncie as capacidades do aparelho, a platéia de jornalistas presentes já se rendeu totalmente ao milagre tecnológico diante de seus olhos incrédulos, em um rompante efusivo de exclamações surpresas e aplausos de pé.
Pouco importa se no mundo real o iPod teve uma recepção morna e desconfiada na época de seu anúncio, desde que Stern consiga aproveitar toda e qualquer oportunidade para reforçar a figura mítica do empresário. Veneração, teu nome é "Jobs". Só que a parcialidade gritante não é boa matéria-prima de uma cinebiografia que se propõe - por definição - a narrar a história factual de alguém, direcionando o filme para a ficção. Esse tom novelístico permeia todo o filme, desde o corte inicial para a juventude de Steve até a fundação da Apple, passando pela ascensão e queda do empresário no mundo corporativo, somente para ressurgir das cinzas de seu próprio império como uma fênix triunfante. Na ânsia de abranger toda a história profissional de Jobs ao invés de focar e aprofundar um único período significativo de sua vida, a dupla formada por Joshua Michael Stern e pelo roteirista Matt Whiteley comprime 27 anos em 122 minutos, empesteados por opções errôneas decorrentes da obssessão de Stern em santificar o seu biografado.
Não que o cineasta oculte a faceta leonina de Steve Jobs, conhecido pela intolerância aos erros de seus subordinados, inabilidade social e falta de escrúpulos. Todos esses defeitos estão presentes em diversos momentos no longa, nos quais Ashton Kutcher tem a chance de brilhar e mostrar a que veio. Só que a instabilidade do inventor é constantemente abordada sob um olhar lúdico, como se fossem meros sintomas de sua genialidade incomum. Em "A Rede Social" (The Social Network, 2010), David Fincher explorou o lado criativo de Mark Zuckerberg sem deixar de desenvolver a tragédia de um garoto inapto ao convívio com outros jovens, que funda a própria rede social motivado por essa ardência de inclusão, oculta em seu íntimo sob uma blindagem de frieza e arrogância. É o exemplo perfeito de como os defeitos também são parte crucial das realizações destes indivíduos extraordinários, mas o Steve Jobs de Michael Stern é quase colocado no posto de vítima do próprio jeito de ser, ao invés de um sujeito forte que pavimentou a estrada ao sucesso com seus erros e acertos.
Nem mesmo existe a preocupação em examinar as raízes de seu pavio curto, que remontam à sua tenra infância, quando foi adotado pela família Jobs após ser abandonado por sua mãe solteira. Esta, aliás, poderia ser a explicação para a recusa de Steve em assumir suas obrigações paternas em relação à sua filha Lisa, mas o argumento jamais é mencionado. Quando surge a necessidade inadiável de explicar seu temperamento e individualismo, tudo se resume ao clichê "ele foi afetado pelo poder". Frente um roteiro extremista que exibe Jobs como um cara grosseiro ou um mestre zen em controle total de seus discursos motivacionais, não há muito o que Ashton Kutcher possa fazer, mas ainda assim o ator tira um coelho da cartola e dissipa grande parte da desconfiança inicial. Embora Kutcher não consiga evitar uma ponta de bipolaridade do personagem ao oscilar entre a raiva e a tranquilidade inspiradora, seu esforço em capturar os trejeitos de Jobs é notável, transparecendo em um retrato carismático e quase fiel do fundador da Apple, que conserva um brilho de empolgação no olhar e faz deste o melhor trabalho na carreira do ator, disparado.
Diante de uma boa interpretação, seria interessante ver o que Kutcher seria capaz de fazer caso tivesse que interpretar Steve Jobs após a descoberta do câncer que aos poucos roubou sua vitalidade. Porém mesmo com todo seu evidente esforço, a tarefa hercúlea de superar um roteiro tresloucado e uma edição confusa é simplesmente uma batalha que o ator não pode vencer. Para piorar, o diretor submete o elenco à cenas constrangedoras (e cafonas) cujo ápice vem logo no início, quando Jobs rege um concerto imaginário sob efeito de ácidos em um campo ensolarado, como se a criatividade do inventor fosse efeito de drogas em um flashback vitalício. Se as risadas do público eram intencionais, o objetivo foi alcançado. É esta a suposta abordagem irreverente de Michael Stern, mergulhadas em uma trilha sonora intrusiva que tenta constantemente subjugar o espectador e impôr o sentimento que a narrativa não alcança.
Ao menos o diretor destaca os meandros corporativos que foram a maior pedra no sapato de Jobs, levando à um golpe orquestrado para extirpar da diretoria um homem disposto à lutar pela inovação do futuro, mesmo que isso implique em perdas financeiras no presente. É interessante ver como os executivos em posições decisivas não compreendem o mercado de fato, muito menos visualizam os benefícios de um investimento à longo prazo. Há pouco espaço para um homem criativo em um ambiente regido pelo "Deus Mercado" e seus caprichos volúveis, e isso fica evidente no filme. Mas o que é inicialmente curioso vai se desgastando até virar uma monótona sequência de reuniões que somos obrigados a acompanhar, sempre com os mesmos temas. Se Cinema é movimento, então essas longas tomadas de drama corporativo se tornam com o tempo uma afronta à este princípio básico.
Como se isso não fosse o bastante, Stern ainda insiste em aplicar as elipses narrativas nos momentos que seriam mais interessantes, como no período de uma década em que Steve Jobs fundou a empresa de computação NeXT, onde adquiriu maturidade para se tornar um grande líder. Também é neste período que o empresário se reconcilia com sua filha primogênita, se casa e tem um filho com outra mulher. Tudo isso pincelado em 60 segundos, abandonando qualquer tentativa de traçar um panorama coerente de sua trajetória profissional e pessoal. Não era essa uma cinebiografia? Menos mal que o núcleo dramático da relação entre Steve Jobs e seu sócio de longa data Steve Wozniak (Josh Gad) funciona bem em termos sentimentais. Apelidado carinhosamente de "Woz", o engenheiro é mais que um parceiro de negócios: é o único amigo verdadeiro de Jobs. Ainda assim, ele não é páreo para miopia afetuosa do protagonista, que por sua vez tem nesta a sua maior tragédia particular. A amizade de ambos funciona pois Josh Gad faz de Wozniak um sujeito simpático e generoso, destacando o ator no elenco de apoio.
Só que mesmo os bons momentos entre Jobs e Woz são ficcionais, de acordo com os próprios personagens reais desta história. Steve Wozniak, Daniel Kottke, Mike Markkula, todas estas pessoas próximas à Steve Jobs foram unânimes ao afirmar que este longa passa longe da realidade. Com problemas de roteiro, edição e direção, o que sobra, então, desta suposta cinebiografia? Uma atuação falha porém dedicada de sua estrela principal, e um departamento de arte atento que situa o filme perfeitamente nas décadas que trespassa, e possibilita ao diretor Stern evocar o potencial imagético de algumas cenas. Beleza é quase tudo que "Jobs" tem a oferecer, e esta ficção romântica talvez possa agradar àqueles que conhecem o ícone apenas pelo nome. Mas certamente irá desagradar aos que sabem um pouco mais de sua história, impedindo que o longa satisfaça "do lixeiro na cidade grande à velhinha do Nebraska", como pregava o Steve Jobs da vida real. Por encarar o design sem considerar a função de sua obra, é apenas irônico que Michael Stern, um dos devotos mais convictos de Jobs, provavelmente fosse o primeiro a ser demitido pelo próprio caso estivesse vivo para testemunhar sua história ser tratada dessa forma no Cinema.
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