"Hitchcock" (2012) - Review
Lembro bem da primeira vez que assisti "Psicose". Com 12 anos de idade, foi o filme que mais me atraiu na prateleira de uma locadora. Por todos os 109 minutos de duração a minha atenção esteve completamente presa no suspense do Hotel Overlook. Eram os anos 2000 e, numa época de franca ascensão da internet, tv à cabo e alta resolução, aquele filme em preto e branco vindo direto de 1960 deixou uma impressão tão forte que moldou para sempre meu gosto por cinema. Estava evidenciada a atemporalidade da obra genial de Hitchcock.
Ao longo dos anos, quanto mais eu pesquisava mais percebia que a história de Alfred Hitchcock por vezes se confunde com a do próprio cinema, tamanha a sua contribuição para a sétima arte. Em mais de 50 anos de carreira, o inglês revolucionou a cinematografia, introduzindo técnicas e conceitos copiados até os dias de hoje por gerações de cineastas após ele. Sua habilidade única para editar o material filmado e sua compreensão dos instintos mais básicos da mente humana rendeu à Sir Hitchcock uma carreira repleta de suspenses e thrillers psicológicos, sucessos tanto de público quanto de crítica.
Mas ele não fez tudo sozinho.
Uma personagem sempre foi esquecida nessa história, ofuscada pela trajetória brilhante e pela personalidade excêntrica do cineasta: sua esposa Alma. É esse o foco de "Hitchcock", filme de Sacha Gervasi baseado no livro " Alfred Hitchcock and the Making of Psycho" de Stephen Rebello, que vem para jogar uma luz na colaboração entre o casal, a verdadeira força motriz por trás de dezenas de clássicos do suspense incluindo a obra-prima do diretor inglês.
O filme retrata justamente os bastidores da idealização e produção de "Psicose", época conturbada tanto do ponto de vista profissional quando pessoal na vida do diretor. Para resumir a trama sem revelar muito, ninguém queria financiar e lançar o filme. O longa era baseado em livro homônimo que foi um completo fracasso de vendas, e ainda haviam cenas de nudez e assassinato com um tom muito maior do que o admitido pela forte censura moralista da época. Além disso, Hitchcock teve que enfrentar batalhas dentro de sua própria casa, em meio à uma crise conjugal com Alma. Mesmo assim, foi ela a verdadeira responsável por colocar a mão na massa e estimular o diretor quando ninguém mais acreditava em seu trabalho, nem mesmo os estúdios que ja haviam ganho tanto dinheiro com seus filmes.
Interpretada por Helen Mirren, carismática e linda como sempre, Alma por vezes assume papel de co-protagonista da trama, tamanha sua importância. Ao mesmo tempo que a relação conjugal com Hitchcock não fosse das mais convencionais devido ao gênio forte do diretor, sua parceria era inabalável. Além de cuidar da parte financeira do lar e dos projetos cinematográficos de Alfred, Alma também trabalhava como assistente de direção, roteirista e editora, inclusive assumindo a direção de "Psicose" por um breve período por ocasião de um colapso nervoso do diretor. A importância de Alma é tanta que por vezes o próprio Hitchcock funciona como seu "MacGuffin" dentro da narrativa, termo popularizado pelo próprio Hitch para designar truque de roteiro na forma de objeto ou pessoa pelo qual o protagonista está disposto a sacrificar tudo para perseguir, controlar, ou nesse caso, proteger. É apenas uma feliz coincidência que este seja seu nome, já que a esposa do lendário inglês é parte da alma de sua obra.
Aqui temos um dos grandes méritos de "Hitchcock". O diretor Sacha Gervasi faz justiça e traz à tona a verdadeira razão pela qual o cineasta inglês entrou para o panteão de lendas do cinema. É verdade que Alfred Hitchcock era um gênio, que chamava atenção tanto pela sua técnica quanto pela sua personalidade extravagante, mas grande parte de sua história se deve à sua esposa. Aqui, Alma finalmente ganha o destaque merecido, algo que o filme mostra sem diminuir em momento algum o mérito do diretor. Além disso, é fascinante ver a produção de "Psicose" e toda a dificuldade encontrada desde a elaboração de seu argumento até a sua distribuição nos cinemas. Nesse sentido, "Hitchcock" de Sacha Gervasi se assemelha em menor grau à "Hugo Cabret" de Scorsese, reverenciando a própria sétima arte.
Claro que é impossível falar isso tudo sem mencionar Anthony Hopkins, no papel da estrela do filme. Aliás, Hopkins só aparece mesmo nos primeiros 5 minutos de projeção, porque após isso sua simbiose com a figura de Hitchcock é tanta que simplesmente esquecemos que ali está um ator contemporâneo e não o próprio Hitch, de forma semelhante ao trabalho realizado por Daniel Day-Lewis em "Lincoln" (2012). Hopkins consegue emular perfeitamente os maneirismos e hábitos conhecidos do diretor, incluindo seus defeitos, e ao fazer isso humaniza uma figura icônica rodeada de uma aura mística. Parte disso se deve à maquiagem que o tornou quase idêntico à Hitchcock, assim como Scarlett Johansson e James Darcy se assemelham à Janet Leigh e Anthony Perkins, estrelas de "Psicose".
Tudo isso cria uma atmosfera verossímil e facilita a catarse do público em "Hitchcock". Aliado à um roteiro ágil e enxuto o filme é sempre dinâmico, afastando a característica maçante que muitas vezes assola cinebiografias. No entanto, em certas horas esse roteiro econômico demais acaba por trabalhar contra o próprio filme. Há partes na trama que são apresentadas e pouco desenvolvidas nos 90 minutos de duração do longa, como as visões de Hitchcock do assassino Ed Gein, que inspirou a história de "Psicose". Não fica claro o real propósito dessas alucinações, que no final das contas ficam perdidas no meio da história. O filme também não se preocupa em aprofundar os aspectos da personalidade do diretor, assumindo que o público já possui certo conhecimento prévio da figura de Hitch. Ainda assim, tudo isso é compensado quando "Hitchcock" foca nos aspectos da produção do clássico de 1960. E levanta uma questão: se até mesmo o "Mestre do Suspense" teve tanta dificuldade para filmar e lançar um longa que viria a se tornar um clássico, quantas boas idéias são abortadas pelos estúdios e quantas outras são esquartejadas ao nascer pela censura exagerada? São questões retóricas que o filme deixa suspensas no ar e provocam reflexão.
Para evitar decepções, antes de assistir "Hitchcock" é preciso ter uma coisa em mente: este não é um filme de Alfred Hitchcock, mas sim sobre um curto período de sua vida. Não há suspense algum, apenas um filme divertido sobre uma figura icônica. É puro entretenimento, e atinge seu objetivo mesmo com diversos problemas que o impedem de explorar todo o potencial disponível. Portanto é injusto ir ao cinema esperando um filme com todos os atributos que consagraram o Mestre do Suspense. Sacha Gervasi finalmente apresenta Alma para o mundo, e ao fazer isso nos permite compreender melhor o trabalho de Hitchcock como um todo, consagrando mais uma vez o famoso ditado "por trás de todo grande homem há uma grande mulher". Mas não é só disso que vive o filme. O foco na produção de "Psicose" torna o longa interessante tanto pela natureza do clássico em si quanto pela metalinguagem. Não é apenas o cinema contando parte da história de Hitchcock. É o cinema contando a história do cinema.
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