Hannah Arendt (2013) - Review
Manifesto em Defesa do Livre Pensamento
Em tempos de manifestações que glorificam o pensamento uniformizado das massas e cerceiam a liberdade de expressão individual, mais uma vez a História se repete ao expor a tendência humana ao maniqueísmo. Mesmo em um contexto onde o debate deveria encontrar terreno fértil para aflorar, vemos indivíduos de opiniões minoritárias sofrerem todo tipo de agressões, perseguidos por suas idéias e segregados à um "gueto intelectual" onde suas vozes não podem encontrar eco. Do contrário incorrem em crime capital contra a "ditadura da maioria", cuja pena corresponde ao isolamento social semelhante ao da filósofa alemã Hannah Arendt, tão bem capturado pelo filme homônimo de Margarethe Von Trotta.
Para tanto, a diretora aponta suas câmeras para 1960, quando o infame líder nazista Adolf Eichmann foi capturado em Buenos Aires pelo serviço secreto israelense, e submetido à julgamento em Israel por crimes contra a humanidade. Ao tomar conhecimento da prisão de Eichmann, a célebre Hannah Arendt (Barbara Sukowa) se ofereceu ao jornal The New Yorker para escrever sobre o evento. As impressões de Arendt resultaram em artigos e no livro "Eichmann em Jerusalém" (Eichmann in Jerusalem), onde a escritora cunhou o termo "banalidade do mal" para caracterizar a mediocridade do homem, simbolizada nos atos monstruosos de Eichmann. Como se a polêmica não bastasse, Arendt apontou a cumplicidade de alguns líderes judeus com o regime nazista como uma das causas para o altíssimo número de vítimas do extermínio, revoltando toda a comunidade judaica e alienando Hannah de todos aqueles que outrora foram seus colegas e amigos.
Não era fácil a tarefa da diretora alemã Margarette Von Trotta em transformar uma história essencialmente verborrágica (e filosófica) em um filme que atraísse a atenção do público fora dos Festivais, mas o roteiro de sua co-autoria com Pam Katz imprime dinamismo ao filme sem abandonar o tom documental. A diretora captura a atmosfera de Nova York no pós-guerra, refúgio de Arendt, onde intelectuais organizavam coquetéis e reuniões para debater suas teorias. Emoldurado por uma película envelhecida que dá ao longa um ar de antiguidade e verossimilhança, o roteiro capta também a tensão decorrente do trauma imposto pelos nazistas,ainda latente em cicatrizes do corpo e alma de milhares de sobreviventes judeus.
Portanto não é surpresa a grande expectativa popular em torno do julgamento de Adolf Eichmann, um dos oficiais mais emblemáticos da SS. Eichmann não era o único a ser julgado por seus crimes de guerra, mas certamente era um símbolo do mal que os nazistas impuseram ao mundo, o que justificava, de um ponto de vista sentimental, o desejo de vingança daqueles que assistiam ao seu massacre jurídico pela televisão. Foi para se defrontar com este indivíduo que Hannah viajou à Israel, e ali na sala do Tribunal se deparou não com o propagado animal sedento por sangue que inspirava ódio no povo, mas com um burocrata "incapaz de pensar" que reduziu sua própria existência à mediocridade de seguir as leis cegamente. Neste ponto, Von Trotta utiliza imagens reais do julgamento para que o público também se depare com a mesma imagem vista por Arendt, para que possamos entender melhor o caminho de seu pensamento acerca daquela figura desdenhosa e insolente, mas extremamente convicta de sua inocência ao obedecer as leis em um positivismo exacerbado.
Os aspectos jurídicos são abordados pelo filme com rara sobriedade, sobretudo o profundo abismo entre Lei e Justiça. Se a lei contraria frontalmente a moral e faz do genocídio uma política de Estado, aqueles que a obedecem agem corretamente? A resposta é não, e por isso Eichmann deve ser punido à altura de seu crime. No entanto, o nazista ainda é um sujeito de direitos, e portanto seu julgamento deve ser baseado na imparcialidade e na consciência de que o indivíduo na cadeira dos Réus representa somente a si, e não a História construída por seus pares. Negar o devido processo legal à Eichmann é fazer de seu julgamento um espetáculo desnecessário, negando-lhe a condição de ser humano da mesma forma que os nazistas faziam com os judeus, igualando-os ao inimigo.
Apontar este fato não constitui, de forma alguma, a defesa ideológica de um criminoso, e o filme deixa isso claro ao dar voz à vítimas reais dos horrores nazistas, bem como à opinião favorável da própria Hannah sobre a condenação do oficial. Porém Von Trotta se interessa mais pela teoria de Arendt acerca da banalidade do mal, onde reside o aspecto mais assustador do longa. Constatar que Eichmann é um funcionário público que jura ter agido corretamente dentro do sistema é constatar a capacidade nata do ser humano para o mal, sem que precise ser "doente". Ao profetizar que este mal no futuro seria executado por pessoas normais manipuladas pelo Estado ao invés de sociopatas e fanáticos, Hannah assustou aqueles que precisavam de uma figura diabólica para odiar, indicando que também estes poderiam trazer a besta dentro de si.
Quando Hannah publicou suas impressões na esperança de estimular o pensamento e o raciocínio individual, se deparou com uma avalanche de críticas ferrenhas no lugar do debate saudável. Subitamente, seu objetivo deixou de ser a simples análise do julgamento de Eichmann para se tornar a luta pela liberdade de expressão. Atacada até mesmo por aqueles que integravam uma suposta elite intelectual, mas que se valiam de argumentos ad hominem e raciocínios infantis para desqualificá-la, Arendt se viu cada vez mais isolada de seus pares, tendo como aliados somente seu marido Heinrich Blücher (Axel Milberg) e a escritora Mary McCarthy (Janet McTeer, em interpretação magnética). No contraste com a relação amigável entre ambas estão os detratores da teórica política, cegos pelo sentimentalismo e avessos à dialética. Para estes, qualquer opinião que ouse afrontar o desejo de vingança das massas (ainda que se alinhe moralmente à estas) é o bastante para qualificar o defensor de tal opinião como um inimigo capital, igualado àqueles que promoveram o Holocausto, e por isso merecedor da pena de morte.
Durante todo o bombardeio constante das mais escabrosas críticas, Hannah Arendt se manteve convicta de sua posição, o que a levou a ser definida ainda como "um poço de arrogância e individualismo". A "lógica" destas pessoas é bem linear: se Arendt é capaz de separar o raciocínio do sentimento, então só pode ser ela uma criatura fria incapaz de sentir. Também ela uma judia que escapou por pouco da morte, Hannah suportou todas as acusações de cabeça erguida sem jamais ceder às pressões por uma retratação pública. O preço pago foi alto: colapso de seu círculo de amizades, isolamento social e desqualificação como antissemita. Mesmo seu mentor intelectual (e antigo amor), o filósofo Martin Heidegger (Klaus Pohl), se volta contra a convicção de Arendt no pensamento próprio em detrimento do coletivo. Daí nasce o drama da protagonista, que floresce em uma interpretação apaixonada e convincente de Barbara Sukowa, através da qual o público enxerga a vulnerabilidade de uma mulher que brincava, fofocava e amava como uma pessoa normal, humanizando a figura de uma das mentes mais brilhantes do Século XX.
À essa altura, o documento histórico da diretora Von Trotta poderia cansar o público, mas o ritmo bem cadenciado do filme provoca o efeito contrário, instigando o espectador a construir seu próprio raciocínio sem jamais subestimá-lo, culminando em um discurso inteligente e feroz de Hannah Arendt diante de seus alunos na Universidade. Por si só esta cena de 7 minutos se consagra como uma das melhores exposições no cinema, sendo o ponto alto de um filme sobre o próprio ato de pensar, que contraria as expectativas ao se apresentar como uma obra instigante e até mesmo engraçada. Desta forma, o longa tem grande apelo entre aqueles familiarizados com a história da filosofia ocidental, mas seu apelo não fica jamais restrito àqueles encastelados em seu conhecimento, sendo acessível também aos que desconhecem a personagem e suas idéias.
Ao tornar sua obra acessível, Von Trotta amplia o alcance de sua crítica à intolerância intelectual, que não se dirige à nenhum grupo específico de pessoas. O fato de revolver ao redor de um acontecimento da história judaica (e, lógico, humana) constitui apenas a base factual do filme, e a rejeição à opinião de Hannah não é exclusividade daqueles atingidos pelo Holocausto. Em essência, é um padrão que se repete historicamente independente de credo,o mesmo que quase levou Galileu à fogueira e muitos outros antes dele. "Liberdade de expressão" não pode ser um termo relativo, sequestrado por quem deseja apenas a prevalência de suas opiniões. Da mesma forma, não há problema em ter uma opinião alinhada à massa, desde que o raciocínio tenha sido construído internamente, e não apenas assimilado mecânicamente pelo indivíduo. O "assassinato de caráter" também constitui um crime, cometido rotineiramente pelos inimigos da dialética que se julgam senhores da verdade. Mas se nos distanciamos dos animais justamente por que dominamos o raciocínio lógico, então é nossa obrigação moral exercitá-lo. É este o argumento de "Hannah Arendt", levado à cabo com maestria por uma direção segura e performances memoráveis.
Mais de 50 anos depois, esta mensagem permanece relevante como nunca. Ainda hoje a intolerância à controvérsia bloqueia a mente de muitas pessoas, o que pode ser constatado tanto nos movimentos que ganham as ruas quanto nas pessoas que abandonam a sala de cinema no meio do filme, enojadas diante de uma argumentação coerente que abala a própria convicção. Felizmente estes são minoria e os aplausos ao final se sobrepõem à indignação particular de uns poucos, mas é necessário fazer com que a luz chegue à todos, caso contrário a paixão argumentativa pode cegar ao invés de contribuir para a luta contra o mal, nos igualando a quem queremos combater. Aí reside o gênio de Hannah Arendt - a pessoa e o filme, desafiando a injustiça e contribuindo para a conscientização da humanidade, um indivíduo por vez.
Clap, clap, clap... Belíssimo texto. Parabéns! Assisti o filme ontem e gostei muito. E depois do seu texto, acho que estou gostando mais.
\"Mas se nos distanciamos dos animais justamente por que dominamos o raciocínio lógico, então é nossa obrigação moral exercitá-lo.\" 😁