A Felicidade Não Se Compra (1946) - Review
Redescobrindo o Poeta do Homem Comum
Quando se fala em Frank Capra, a primeira lembrança que vem à mente é aquela do cineasta genial reconhecido por público e crítica, laureado com 3 Oscars de Melhor Direção, cujo nome ecoa até hoje no Cinema por meio de seu legado e sua influência no trabalho de gerações posteriores. Dono de uma filmografia extensa e brilhante, Capra deixou sua marca indelével na história da Sétima Arte ao assinar obras clássicas que celebravam o homem comum, a exemplo de "Aconteceu Naquela Noite" (It Happened One Night, 1934), "O Galante Mr. Deeds" (Mr. Deeds Goes to Town, 1936) e "Horizonte Perdido" (Lost Horizon, 1937). No entanto, se hoje o diretor é considerado o principal nome do início do Cinema falado, nem sempre Capra pôde desfrutar de seu merecido reconhecimento.
Enquanto a década de 30 representa o auge de sua carreira, os anos 40 trouxeram ao diretor o gosto amargo do fracasso. Para compreender a crise de popularidade enfrentada por Capra neste período, é necessário antes um breve olhar para a trajetória biográfica que o levou ao estrelato. No início do século XX, aportava em Nova York uma embarcação trazendo mais uma leva de imigrantes italianos atraídos pela "terra das oportunidades". Entre eles estava o pequeno menino Francesco Rosario Capra, que aos 6 anos de idade já tinha um sonho muito bem definido: tornar-se um americano bem sucedido. Inteligente e esforçado, Capra trabalhou duro para sair da pobreza e construiu seu nome na indústria cinematográfica a partir do zero, sempre confiante e esperançoso por encontrar o sucesso em sua próxima empreitada. Naturalmente, seus filmes refletiam os valores que o guiaram na perseguição ao "sonho americano", e foi cultuando este sonho e enaltecendo a bondade humana que o diretor atraiu multidões ao cinema em busca de seu otimismo.
Então veio a Segunda Guerra Mundial, um divisor de águas em sua carreira. O primeiro filme de Capra após seu alistamento foi "A Felicidade Não Se Compra" (It's a Wonderful Life, 1946), cuja história acompanha o desajeitado e bondoso George Bailey (James Stewart). Desde menino, Bailey sonha em conhecer o mundo fora dos limites da pequena cidade Bedford Falls, mas um forte senso de dever e altruísmo sempre frustra seus planos. Obrigado a permanecer em Bedford Falls tanto pelas circunstâncias da vida quanto por suas tendências filantrópicas, George acaba em uma situação de penúria que o coloca nas mãos do inescrupuloso banqueiro sr. Potter (Lionel Barrymore). Sua companhia para atravessar um mar de dificuldades é a bela Mary Hatch (Donna Reed), que nutre um amor incondicional por ele e enxerga a vasta riqueza de seus valores. No entanto, o apoio de Mary não evita que George se entregue pouco a pouco ao desanimo imposto pela infindável sucessão de fracassos e frustrações, culminando em um desespero que o leva a cogitar o suicídio. Eis que entra em cena o anjo Clarence (Henry Travers), que mostrará à George como estariam aqueles que ama caso nunca tivesse existido, ajudando-o a compreender o valor dos atos que fizeram sua vida importante e maravilhosa.
Por tangenciar temas religiosos e com o seu final situado às vésperas do Natal, esta obra-prima de Frank Capra hoje é vista como um símbolo natalino por emissoras de televisão norte-americanas, e sua exibição tornou-se um costume na época de festas, contrapondo-se ao materialismo da programação comercial. No entanto, seria superficial colocar o filme sobre esta luz, falhando ao compreender as intenções do próprio Capra. Ao retornar da Segunda Guerra, o diretor queria na verdade homenagear as vidas e os sonhos dos cidadãos comuns, que davam seu melhor para fazer a coisa certa e melhorar tanto a própria vida quanto daqueles que faziam parte de seu convívio. Para isto, o diretor comprou os direitos cinematográficos sobre o conto "The Greatest Gift" de Philip Van Doren Stern, que acumulava poeira nas prateleiras do estúdio RKO, e com ajuda de Frances Goodrich e Albert Hackett (que anos mais tarde iriam roteirizar "O Diário de Anne Frank", em 1958) construiu o script baseado nas melhores partes de roteiros já existentes.
Para soprar vida à sua idéia, Capra precisava de atores capazes de sustentar uma história sobre pessoas, apoiada em grande parte na relação entra os personagens. Dono de um olho clínico para escalar o elenco de seus filmes, o cineasta não teve dúvidas quanto ao ator que interpretaria o protagonista: James Stewart, que já havia trabalhado com o diretor em "Do Mundo Nada Se Leva" (You Can't Take it With You, 1938) e "A Mulher Faz O Homem" (Mr. Smith Goes to Washington, 1939). Habituado a interpretar homens comuns em sua luta cotidiana, e bem distante de ser considerado um galã, Stewart foi sem dúvida a opção mais adequada para o papel. Afinal de contas, George Bailey é um homem comum submetido à uma história trágica, que no entanto requeria um intérprete capaz de exaltar com bom humor a bondade do personagem. James cumpre estes objetivos com maestria, ao mesmo tempo que transparece toda a frustração e a dor de um homem obrigado a sacrificar seus sonhos para preservar aqueles que ama.
Não é à toa que o ator está confortável no papel, com performance magnífica que lhe rendeu a indicação ao Oscar. Stewart foi a primeira grande estrela do cinema a vestir um uniforme militar na guerra, mas diferente de Capra, o ator rejeitou o status de símbolo do alistamento e lutou no front, ao lado dos verdadeiros "homens comuns" que jamais vivenciaram o glamour de Hollywood. Assim como eles, ao voltar da guerra o ator trouxe na bagagem uma nova visão da vida, capaz de enxergar o lado podre da humanidade. Stewart canalizou a experiência para enriquecer o seu trabalho no Cinema, o que facilitou a superação do desafio sombrio de "A Felicidade Não Se Compra", seu primeiro papel após o conflito bélico. Há muito de James Stewart em George Bailey, um ser humano bom porém imperfeito, capaz de sangrar o próprio bolso para construir sonhos alheios, e de descarregar suas frustrações nos filhos pequenos que tanto ama quando a pressão dos fracassos se torna insuportável.
Enquanto George tem em Bedford Falls a prisão que origina suas desilusões, Mary tem em George todas as razões para permanecer na cidade. Diferente do protagonista, a personagem já teve a oportunidade de ver o mundo, mas voltou à seu lugar de origem por não encontrar lá fora correspondência ao amor que nutre por Bailey. Viver com ele em uma casa velha cheia de crianças é o que lhe traz a felicidade plena. É dessa forma que Frank Capra utiliza Mary para apontar que o paradoxo do "sonho americano": ele não é igual para todos, embora seja um termo genérico que propagandeia todo um estilo de vida "ideal" da sociedade. Donna Reed interpreta Mary com vivacidade e faz dela uma mulher forte, que arregaça as mangas para conseguir o que quer e ajudar seu marido quando necessário, sem deixar seu charme e pureza de lado. Quem constata a ótima dinâmica entre Reed e Stewart na tela nem imagina que, por trás das câmeras, Capra teve que lidar com a relutância do ator em gravar a pivotal cena de beijo onde o protagonista percebe que a beldade em sua frente é a mulher de seus sonhos. Stewart dizia estar "enferrujado" para gravar uma cena amorosa, e o diretor, percebendo a evidente química entre o ator e Donna Reed, reorganizou a cena para que ambos dividissem o mesmo telefone. O resultado é uma cena carregada de tensão sexual onde fica evidente a atração lato sensu entre os personagens, com ambos inexoravelmente atraídos um pelo outro, culminando na melhor cena de beijo na história do Cinema.
Cada um dos membros do elenco de apoio também exemplifica o talento do cineasta para as escalações e desenvolvimento dos personagens. Cada um deles tem uma história de vida ligada à George, e Capra utiliza os coadjuvantes para manter o tom otimista durante toda a fita. Embora só vejamos Bailey genuinamente feliz nos momentos que antecedem suas tentativas em sair de Bedford Falls, seu drama não afasta do longa o otimismo típico de Capra, já que o altruísmo do protagonista faz a felicidade daqueles que o cercam ao atenuar suas penúrias e dar-lhes uma vida digna. Porém mesmo com as interpretações eficazes de todos os atores, Lionel Barrymore é aquele que se destaca ao evocar genuína repulsa no papel do vilão sr. Potter. O personagem é aquele que se contrapõe à bondade de George, e a dicotomia entre ambos foi vista à época como uma severa crítica de Capra ao capitalismo, que lhe colocou na mira do FBI em tempos de caça aos comunistas. Mas o cineasta se interessa principalmente pelo aspecto sentimental, e faz de Potter um sujeito tão avarento e solitário que fica evidente pertencer à George a verdadeira riqueza, na figura de sua família e amigos.
Para explorar este argumento, Capra pontua sua obra com detalhes que enriquecem a linguagem visual, e mantém pequenas surpresas a serem percebidas a cada nova sessão do filme. À exemplo do busto de Napoleão que decora o escritório de Potter, e a foto do pai de George pendurada na parede de seu trabalho, indicativos do caráter dos personagens. Pequenos detalhes como esse são indicativos de uma cinematografia apurada, que também fica evidente na larga escala do cenário de quatro acres que dá vida à Bedford Falls, assim como na neve desenvolvida para não ser barulhenta, o que arruinaria a gravação do som. Por isso, mesmo em preto e branco o filme transmite uma forte carga sentimental, fruto da habilidade do cineasta em cultivar a magia do Cinema, que aqui floresce em seu esplendor. À nível textual, o diretor permite ao público testemunhar à uma distância média enquanto George sucumbe ao custo do altruísmo, nos estabelecendo desde o início como observadores de sua tragédia particular, próximos apenas o suficiente para sermos seduzidos pela performance carismática de Stewart, que reflete o homem médio e possibilita uma forte empatia com o personagem. Desta forma, o sofrimento não é apenas de Bailey, pois seus problemas tem em si um pouco do cotidiano de todas as pessoas comuns.
E é apenas submetendo o público à uma sucessão de episódios trágicos que Capra atinge seu objetivo, proporcionando uma grande recompensa sentimental quando o atrapalhado anjo Clarence, em interpretação muito carismática de Henry Travers, concede à George o seu desejo de nunca ter nascido. O anjo então mostra ao protagonista como estaria a vida de todos que conhece caso nunca houvessem tido nele a referência de integridade moral. Sem George, tudo mudou: Bedford Falls agora é Pottersville, uma cidade onde não falta dinheiro circulando em jogo e bebida, mas que agora serve de lar para as vidas arruinadas de seus amigos e de Mary. Não há qualquer sutileza na forma com que Capra apresenta a mudança radical na realidade, mas é desta forma que o cineasta consegue o impacto almejado de sua mensagem fundamental: todo indivíduo tem o seu valor. George compreende isso, e a partir daí se sente grato por sua existência, percebendo em seus amigos a riqueza sentimental acumulada em todos os seus anos de vida apenas por ser decente. Neste momento, Capra faz o movimento que inverte a dinâmica entre o protagonista e todos os outros personagens, dando à Bailey um momento de calma e reflexão enquanto contempla o esforço dos demais em ajudá-lo pela primeira vez.
No entanto, mesmo com uma mensagem tão acalentadora o público rejeitou o filme, que fracassou nas bilheterias à época de seu lançamento. Muitas são as razões especuladas para este fracasso, mas o fato é que o idealismo de Capra se encontrava em dissonância com a inversão de valores e a degradação social no pós-guerra. Como resultado, ganharam voz os críticos que chamavam o trabalho do cineasta de "capra-corn" (algo como "a pieguice de Capra"). Portanto "A Felicidade Não Se Compra" permaneceu dormente até ser redescoberto na década de 60, com o fim de seu copyright, sendo ironicamente catapultado de volta à seu status de obra-prima pelo raciocínio corporativo de emissoras em busca de programação barata de qualidade. Novamente o público pôde ver que a tal "pieguice" nada mais era do que a simplicidade capaz de desarmar até mesmo a alma mais embrutecida, desde a cena inicial com estrelas dialogando entre si. Por meio desta obra quintessencial, Capra pôde convidar novas gerações a refletir sobre o altruísmo, para chegarmos à conclusão de que o valor de uma vida é avaliado na extensão do bem realizado pela pessoa, e fazer a coisa certa deve ser visto não como um meio para ser recompensado, mas como a recompensa em si.
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