Elysium nosso de cada dia
Na Grécia antiga, Elysium era o termo que designava o reino idílico reservado aos indivíduos com sangue divino ou heróico. Assim os gregos chamavam o Paraíso, onde os escolhidos pelos Deuses viveriam deitados em eterna bênção e felicidade após a morte. Por outro lado, os não afortunados tinham seu destino no mar de almas errantes de Hades, ou nas chamas do Tártaro. Para estes, não havia uma alternativa reconfortante. É esta metáfora mitológica que sustenta o novo filme de Neil Blomkamp, novamente utilizando a ficção científica como veículo de seus pertinentes comentários sociais, sem abandonar a ação e os belos visuais que marcaram Distrito 9 (District 9, 2009), o que posiciona Elysium (idem, 2013) bem acima da média, ainda que sem a profundidade argumentativa de seu antecessor.
A estratificação social é visível logo na abertura do filme, que traz a notável dicotomia entre a Terra e a estação espacial Elysium. Em 2154, a miséria dominou a paisagem terrestre com favelas superpopulosas. Los Angeles agora é um desses enormes guetos, onde vive Max Da Costa (Matt Damon), ex-criminoso cujo trabalho é construir os mesmos robôs que o oprimem diariamente e mantém a população sob constante vigilância policial. Neste cenário devastado por pobreza e doença, a elite da sociedade se refugiou no paraíso artificial que orbita o planeta e dá nome ao filme, protegidos de imigrantes ilegais pela implacável Secretária de Defesa Delacourt (Jodie Foster). Quando um acidente de trabalho reduz a vida de Max à apenas 5 dias restantes, ele precisa voltar ao crime para chegar à Elysium com a ajuda do contraventor Spider (Wagner Moura) e de um exoesqueleto fundido aos seus ossos, em busca da tecnologia avançada capaz de curar até mesmo as piores doenças e mutilações em poucos segundos, mas disponível apenas aos habitantes da estação espacial.
Escrita pelo próprio Blomkamp, a história aborda temas contemporâneos que vão da crise na saúde pública à questão da imigração ilegal, esbarrando até mesmo na filosofia do transhumanismo, onde a simbiose entre tecnologia e seres humanos é estimulada como forma de superar os limites físicos, o mesmo feito pelo exoesqueleto de Max. Percebe-se em Elysium a mesma consciência social que o diretor demonstrou em Distrito 9, mas diferente deste, há aqui um orçamento volumoso de 115 milhões de dólares em jogo, que deixa Blomkamp sujeito às pressões do estúdio para tornar seus argumentos mais palatáveis ao gosto do grande público. Em Hollywood, isto geralmente se traduz em um aumento da dose de ação no filme, e assim o cineasta sucumbe pouco a pouco às sequências de correria e tiroteios, sempre com a mesma violência gráfica de seu longa anterior, um indício de sua visão cavernosa da realidade.
Ainda assim, Blomkamp consegue desenvolver suas idéias o suficiente para fazer desta uma história interessante e original, algo cada vez mais raro em Hollywood atualmente. É verdade que o subtexto de Elysium não vai muito além de sua superfície, mesmo porque sutileza não faz parte da assinatura de Blomkamp, que prefere uma abordagem direta e contundente para potencializar o impacto de seus argumentos. Não há mensagens nas entrelinhas além do que está na tela, mas os pontos perdidos nesse quesito são ganhos na originalidade de um filme que retrata os ideais filosóficos de seu criador, sem deixar pontas soltas de olho em uma continuação. Nesse sentido, o diretor utiliza o sci-fi magistralmente para refletir sobre a atualidade sem uma associação direta com a vida moderna, fazendo de Elysium uma alegoria da desigualdade que funciona tanto de forma independente como no contexto de seu tempo.
Falando em originalidade, o visual do longa é outro ponto forte onde transparece a criatividade de Blomkamp, que apresenta cinematografia brilhante em cenas amplas mas evoca o pior de Michael Bay nas cenas de luta, com movimentação confusa e irritante. Alguns designs apresentam elementos próprios da assinatura visual do diretor, tornando sua obra coesa como se Elysium se passasse no mesmo universo de Distrito 9, e a direção de arte inspirada apresenta tecnologias plausíveis que fundem o presente e o futuro, marcadas pelo improviso e desgaste que denunciam a pobreza sufocante na Terra. Elysium, por outro lado, tem um visual belíssimo que faz jus ao seu nome. Não é à toa que Max sonha com o lugar desde criança. Matt Damon, aliás, entrega uma performance eficaz no papel do anti-herói protagonista, um sujeito comum que apresenta ferocidade ao ser encurralado como um animal em perigo, e vira um salvador involuntário. Uma pena que sua amiga Frey (Alice Braga) não atinja a mesma eficácia ao cair no mesmo perfil de mãe em perigo que a atriz se acostumou a fazer.
Mas em termos de elenco, o filme pertence mesmo à Wagner Moura e Sharlto Copley. Moura está muito bem na pele do criminoso Spider, compondo um personagem cheio dos próprios trejeitos e até uma voz única, que lhe dá um tom caricato. O mesmo pode ser dito de Sharlto, que faz de Kruger um vilão maníaco e memorável. São dois personagens que incorporam a criatividade de Blomkamp e ajudam a construir um filme divertido, ainda que baseado em uma realidade crua. Mesmo influenciado pela obviedade hollywoodiana, o diretor sucede ao criar dois mundos completamente diferentes entre si, mas paralelos ao contexto social atual. Iluminar as situações contemporâneas é uma das características essenciais do sci-fi, e a alegoria mitológica de Blomkamp atinge esse objetivo ao nos dar em primeira mão o ponto de vista desfavorecido, tornando a obra pertinente enquanto vivermos distantes em nossos Elysiums do dia a dia.
Crítica muito bem escrita (mais uma vez) pra um filme que tem méritos pra vários elogios.
É ótimo ver Wagner Moura se saindo tão bem numa produção internacional. Fiquei orgulhoso!
Valeu Patrick! Sim, o filme merece os elogios, e relendo o texto hoje, algumas semanas depois de ter assistido, continuo mantendo minhas posições em relação à tudo que escrevi. Funcionou bem, e mantém a boa sequência de Blomkamp, cada vez mais autoral.