Círculo de Fogo (2013) - Review
Criatividade, uma força da natureza
Quando a primeira ogiva nuclear obliterou em segundos um pedaço da civilização construído em séculos, a humanidade se defrontou com o potencial devastador de seu cortejo ao poder atômico. Traumatizados, os japoneses precisavam curar suas feridas para começar a reconstrução, e a "sociedade do espetáculo" uniu o útil ao agradável utilizando o medo como matéria-prima do entretenimento, refletindo a catástrofe radioativa na cultura popular. Nasciam as obras do tokusatsu, baseadas em efeitos especiais e ramificadas em gêneros que abraçavam a ficção científica e o horror, como os filmes de kaiju, monstros gigantes representados principalmente pelo "Godzilla" (Gojira, 1954), e as produções com robôs imensos chamados "mecha". Alheio aos desígnios da indústria cinematográfica, o menino mexicano Guillermo Del Toro cresceu cultivando uma paixão por estes gêneros, e anos mais tarde, "Círculo de Fogo" (Pacific Rim, 2013) se revela o exemplo perfeito das influências de Del Toro, prestando uma homenagem inesperadamente profunda às paixões do cineasta sem jamais sacrificar a própria personalidade singular.
O prólogo do filme revela a história antes de mergulhar na ação, detalhando os primeiros anos de guerra da humanidade contra os Kaijus, monstros gigantes que brotam de uma fenda dimensional na região conhecida como Círculo de Fogo no Pacífico Oriental. Após a aparição dos primeiros Kaijus e a subsequente destruição de grandes metrópoles, os países deixaram de lado suas diferenças para fundar a Aliança Militar do Pacífico, cujo principal recurso para combater a ameaça eram os Jaegers, robôs imensos pilotados por duplas de pilotos unidos à máquina e entre si por uma ponte neural. Os irmãos Raleigh (Charlie Hunnam) e Yancy Beckett (Diego Klatenhoff) são as mentes no comando do jaeger Gipsy Danger, mas após o fracasso em uma missão de rotina, Raleigh abandona o cockpit para se recuperar de um trauma. No entanto, quando os Kaijus evoluem para combater os humanos e viram o jogo da guerra, o marechal Stacker Pentecost (Idris Elba) recruta Raleigh novamente para participar de uma última missão desesperada, ao lado da iniciante Mako Mori (Rinko Kikuchi), buscando vencer a ameaça à tempo de evitar a ruína completa da civilização.
O roteiro escrito em parceria do próprio Del Toro com Travis Beacham ("Fúria de Titãs", 2010) une os kaijus e os mechas em uma trama coerente dentro de seu próprio universo, sem fazer do filme um mero pastiche destes gêneros. O longa é construído sobre elementos originais que proporcionam argumentos interessantes a serem trabalhados e compõem o aspecto visionário da ficção científica, sobretudo a conexão neural que fundamenta a tecnologia jaeger. Não apenas este é um conceito que fará o longa ser lembrado em um futuro próximo, como também serve de base para o relacionamento dos protagonistas Raleigh e Mako, enriquecendo a narrativa bem trabalhada pelo script. A originalidade está presente também nos designs dos kaijus e dos jaegers, que prestam homenagem à filmes clássicos sem nunca copiar conceitos já explorados anteriormente.
Consciente de suas referências mas iluminado com uma criatividade efervescente que confere personalidade única às suas obras, Del Toro utiliza sua década de experiência como designer de efeitos especiais para construir cuidadosamente a identidade do longa. O cineasta pôs a sua equipe para construir do zero todas as criaturas orgânicas e mecânicas que se enfrentam na tela. Cada jaeger representa uma nação diferente e com isso traz sua própria caracterização, com elementos visuais que identificam seus países de origem. O jaeger russo Cherno Alpha, por exemplo, tem uma estrutura rígida e um formato de cabeça que lembra uma usina nuclear, indicando ao público seu longo tempo de serviço e o país de origem. Isto se repete no caso dos Kaijus, que guardam apenas características alenígenas gerais da mesma espécie, com visual inspirado nas criaturas demoníacas imaginadas por H.P. Lovecraft, se diferenciando a cada aparição para não cansar o público com uma rotina visual.
Este exercício de criatividade feito por Del Toro e sua equipe se traduz na tela em cenas límpidas que aproximam o filme do cinema clássico de ação, capturadas pelo cineasta com ênfase na escala dos movimentos e suas consequências. Como o diretor não restringe o foco de suas lentes à planos fechados e nem recorre à uma edição confusa para esconder potenciais limitações de sua obra, a ação transcorre de forma clara e o público não se perde entre os elementos em cena, todos claramente identificados por seus designs originais. Com toda a destruição em tela, Del Toro faz de "Círculo de Fogo" um cinema de caos, mas consegue afastá-lo de um "cinema DO caos". Cunhado para identificar técnicas modernas de filmagem da ação, o termo esclarece a situação precária que o gênero atravessa atualmente, nas mãos de cineastas como Tony Scott e Michael Bay que buscam vencer o público pela força bruta do movimento frenético em seus filmes. Mas não há aqui qualquer vestígio de preguiça, já que Del Toro não utiliza a edição ou a trilha sonora como bombas sensoriais, mas sim como ferramentas para trazer à tona toda a exuberância do mundo por ele criado.
Desta forma, "Círculo de Fogo" traz em seu DNA o estilo do cineasta e a facilidade de engajar o público na ação ao invés de submetê-lo à passividade de um massacre estético, mas esta imersão não se dá apenas pela intensidade do movimento. Guillermo Del Toro não é um diretor conhecido somente pelo seu talento em construir mundos vivos, ou por seu olho para selecionar cenas imbuídas de poesia que exaltam a vivacidade destes mundos, como o flashback que apresenta a pequena Mako Mori com seu sapatinho vermelho na mão enquanto chora em meio às ruínas de uma cidade, representando seu coração perdido. A credibilidade de Del Toro vêm também em grande parte de seu talento para evitar clichês que infestam obras de outros diretores, como o tom grave que parece ser imperativo em filmes atuais como "Homem de Aço" (Man of Steel, 2013). É assim que o cineasta descomplica o que poderia ser complexo, preservando uma profundidade inusitada e bem-vinda em um blockbuster.
Nesse sentido, "Círculo de Fogo" é uma produção que poderia ser extremamente rasa nas mãos de um cineasta menos habilidoso no trato narrativo, mas Del Toro segue uma abordagem que investe no desenvolvimento dos personagens e seus relacionamentos, navegando o filme para fora das águas rasas onde repousam a maioria de seus pares. A mencionada ponte neural cria a necessidade da confiança mútua que é construída pela dupla principal até que seus defeitos e qualidades complementem um ao outro, atingindo simbiose perfeita entre as pessoas e a máquina. Mas este argumento não é o único caminho. Cada um dos personagens tem sua história desenvolvida em pequenos arcos narrativos que exploram as relações com seus pares, geralmente acompanhadas da superação de dramas particulares. Até mesmo o arrogante piloto Chuck Hansen (Robert Kazinsky) ganha novas nuances progressivamente, possibilitando a empatia com o público à tempo de nos importamos com ele e valorizarmos seu heroísmo no clímax do filme.
Com isso, Del Toro estabelece a ponte que liga o público à ação puramente digital, dando aos jaegers mecânicos uma alma humana que permanece latente durante toda a projeção, aumentando o peso das consequências de cada batalha. Mas o cineasta teria falhado em seu objetivo de equilibrar ação e emoção sem um elenco capaz de transparecer o esforço físico e emocional de seus personagens, o que acontece sem problemas. À começar pela dupla Raleigh e Mako, que conta com interpretações eficazes de Charlie Hunnam e, principalmente, Rinko Kikuchi. O papel de Mako é o mais complexo do filme, com uma riqueza de nuances que Kikuchi abraça perfeitamente, em bela dinâmica com seu colega. O fato de não haver um romance propriamente dito entre ambos (apesar da evidente tensão sexual) é parte do esforço de Del Toro em evitar clichês, e faz com que a relação da dupla se desenvolva com muito mais naturalidade. O marechal Stacker Pentecost é outro que simboliza o estilo do diretor, com sua postura séria mas carinhosa para com seus subordinados, em interpretação paternal e estilosa de Idris Elba.
Mesmo a dupla de cientistas, os drs. Gottlieb e Newton Geiszler, servem à engrenagem bem azeitada do diretor. Os atores Burn Gorman e Charlie Day trazem o alívio cômico que ajuda na leveza da fita, mas defini-los como meros subterfúgios emocionais é limitar a utilidade de ambos na trama. A dupla participa dos momentos cruciais que mais impulsionam a narrativa, sobretudo Day, que interpreta Newton com graça sublinhada sutilmente por uma faceta sombria de loucura. Todos são personagens fictícios mas com conflitos emocionais reais, ajudando a construir a verossimilhança almejada por Del Toro. Mergulhados em um ambiente pensado nos mínimos detalhes para evocar um universo real e existente muito antes dos minutos iniciais, os personagens integram um microcosmo marcado pela guerra, tanto no metal arranhado dos jaegers como nos submundos onde a sociedade exausta respira à sombra da ameaça constante.
Este tema bélico é um argumento que poderia ter sido favorecido com mais peso dramático, o que não ocorre. Além disso, há indícios de uma distopia militarizada onde Kaijus são vistos como objetos de culto religioso, e o desenvolvimento deste argumento traçaria um paralelo interessante com o sonho da humanidade em se unir sob uma consciência coletiva, como ocorre dentro dos Jaegers. Mas Del Toro não investe nestes temas em busca de uma leveza que torne o filme próprio para todos os públicos. Por isso faz questão de mostrar a evacuação das cidades e a demolição de prédios vazios nas batalhas, observando que há poucas vidas humanas sendo perdidas. Assim o público pode apreciar a ação sem qualquer peso na consciência, fazendo desta produção um entretenimento inocente e leve que se mantém fiel às suas raízes no tokusatsu japonês. Mesmo a estrutura do longa nasce desta fonte, por vezes se assemelhando à um seriado antigo, como nas armas poderosas que são utilizadas somente no último minuto e no contrabandista Hannibal Chau (Ron Perlman), uma caricatura divertida que parece ter saído direto de um anime. Tudo à luz da fotografia colorida e cheia de contrastes, um verdadeiro agrado aos olhos que dá à ficção ares de fantasia.
É desta forma que "Círculo de Fogo" se consagra como um dos melhores blockbusters do ano, servindo de ode à cultura japonesa e reverenciando a Sétima Arte em si na figura de obras clássicas como "Star Wars". Como o cinema de Del Toro é um cinema de autor, ainda que comercial à seu próprio modo, o filme possui uma identidade própria construída pelo cineasta em sua melhor forma, provando sua versatilidade para manobrar orçamentos de todos os tamanhos. É verdade que a predileção pelo gênero ajuda na catarse de quem assiste, mas equilíbrio perfeito entre ação e emoção faz desta uma produção que impressiona visualmente sem deixar sua alma se perder na escala. Não é à toa que o jaeger herói é justamente um modelo analógico, servindo como um recado do cineasta de que o componente digital deve servir ao humano, jamais o contrário. O filósofo Mikhail Bakunin certa vez disse que "a paixão pela destruição é uma paixão criativa", e é focando o choque entre forças da natureza que Del Toro constrói sua obra com um pedaço de si, vocacionada à eternidade ao ultrapassar as barreiras da tela grande.
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