Arte imitando a vida.
Em 2009, o sequestro do navio cargueiro Maersk Alabama ganhou as manchetes do mundo todo. Registros de pirataria na costa da Somália nem de longe eram notícia nova, mas dessa vez o que era rotineiro ganhou contornos de tragédia com o sequestro do Capitão Richard Phillips, que se ofereceu aos piratas somalis em troca da liberdade de sua tripulação. Sedenta pelo espetáculo da vida real e cega pelo patriotismo, a mídia norte-americana tratou de polarizar a situação, pintando os somalis como terroristas violentos e elevando Phillips ao status de herói. O bem vencia o mal, e o mundo ainda estava em seu devido lugar. Mas o cineasta Paul Greengrass (O Ultimato Bourne, 2007) não viu as coisas de modo tão simplista. Com seu olhar atento à verdade por trás do show midiático, Greengrass decidiu contar uma história diferente das manchetes triunfais, abordando os fatos sob uma perspectiva imparcial de sobrevivência que deu origem à um dos melhores thrillers de ação do ano. Quem diria que a vida real poderia ser uma experiência cinematográfica tão intensa?
Na visão anti-maniqueísta do diretor, o indivíduo no olho do furacão não é uma figura heróica típica do gênero movido à adrenalina, e sim um sujeito comum. Greengrass estabelece as regras de seu jogo logo no início da narrativa, com o Capitão Phillips de Tom Hanks se preparando para mais uma viagem à trabalho. Pela conversa de Phillips com sua esposa Andrea (Catherine Keener), aprendemos que ele é um homem de família cuja preocupação com os avisos de pirataria na costa somali é justificada. Em um cenário de crise econômica e desemprego, Phillips é obrigado a acatar quando a empresa lhe submete à uma rota perigosa traçada para cortar gastos de transporte. Mas o americano não é o único com chefes a obedecer. Do outro lado do planeta, o diretor nos apresenta à Abduwali Muse (Barkhad Abdi), pescador somali alistado à força por criminosos locais para roubar cargas em alto-mar, junto com outros miseráveis sedentos por qualquer trabalho em uma região paupérrima.
Os destinos de ambos se entrelaçam em uma cena construída meticulosamente, como um duelo tenso e calculado de dois capitães. De um lado Phillips, no comando do gigantesco Maersk Alabama, labirinto flutuante que se move lentamente como um pesado animal. Do lado oposto Muse, comandando um punhado de homens armados em lanchas rápidas que parecem insignificantes diante do navio cargueiro. É o começo explosivo de uma narrativa inteligente dividida em três atos distintos pelo roteirista Billy Ray (Jogos Vorazes, 2012), baseada no livro “A Captain’s Duty: Somali Pirates, Navy SEALS, and Dangerous Days at Sea” escrito pelo próprio Phillips. O primeiro ato apresenta os personagens e a tempestade que deles se aproxima, antes que Paul Greengrass engate o ritmo frenético na segunda parte, quando a invasão do navio provoca as primeiras fagulhas de tensão. A trama incendeia de vez no ambiente claustrofóbico do bote salva-vidas onde o diretor nos confina junto com os protagonistas, quando finalmente a tremedeira das câmeras deixa de ser um mero exercício nauseante de estilo para recriar uma situação caótica onde o perigo letal é iminente, provocado pela presença ostensiva da Marinha norte-americana, que impõe medo tanto à Phillips quanto aos somalis.
Tal qual um capitão experiente, o diretor navega seu filme suavemente pelos três atos, que juntos formam uma narrativa sólida de 2 horas e 15 minutos que duram de um piscar de olhos, tamanha é a intensidade do ritmo que Greengrass imprime com sua direção visceral. Há uma ameaça constante no ar como se tudo pudesse dar errado repentinamente, sentimento que advém em grande parte de uma preparação perspicaz do elenco, que manteve o grupo americano e o grupo somali separados até o momento crucial da abordagem marítima. Tom Hanks viu pelo binóculo seus algozes fictícios pela primeira vez, quando se aproximavam rapidamente do Maersk Alabama. O medo que o ator diz ter experimentado neste momento parece genuíno, e sua catarse se traduz em uma das melhores atuações de sua carreira desde Náufrago (Castaway, 2001) ou mesmo Forrest Gump (idem, 1994). Hanks incorpora perfeitamente o sujeito normal sob pressão que reage de forma crível às situações apresentadas – leia-se: um fuzil apontado para sua cabeça. Alinhado com a abordagem realista do cineasta, o ator é parte fundamental na construção do permanente e cada vez mais sufocante clima hostil, na medida em que a situação foge do controle de Phillips e Muse.
O pirata, aliás, não fica atrás de Phillips em termos narrativos. Embora o filme leve o nome do Capitão, Muse não é tratado como um mero antagonista, e sim como co-protagonista. O personagem nem mesmo é ofuscado pelo brilho de Tom Hanks, pois conta com uma performance altamente inspirada do novato Barkhad Abdi para lhe soprar vida. Com sua fisionomia esquálida e olhar penetrante, Abdi é capaz de inspirar terror e pena simultâneamente, repetindo “tudo vai ficar bem” como um mantra que logo se transforma em uma mentira consciente misturada à sinais tímidos de admiração e respeito por seu refém. Muse e seus companheiros fogem do estereótipo vilanesco por não trazerem uma ferocidade gratuita no olhar, e sim provocada por um profundo desespero. Se voltarem para casa de mãos vazias, morrem imediatamente. Mas se voltarem com uma carga volumosa, terão apenas a permissão de seus “chefes” para continuar morrendo lentamente no curso de sua existência miserável. Não há cenário positivo para eles. Embora trate-se de uma visão determinista, o diretor evita as águas traiçoeiras do clichê piegas e não busca justificar o crime, apenas estabelecer Phillips e seus algozes no mesmo patamar como vítimas das circunstâncias.
Tal complexidade emocional é o grande trunfo do longa, possibilitando a empatia pelos dois lados da moeda. A bandeira americana que aparece tremulando majestosa no alto do navio logo nas primeiras cenas provoca o receio de que estejamos diante de apenas mais uma daquelas histórias regadas à patriotismo tolo, mas Capitão Phillips não é fruto dessa linha de produção hollywoodiana. Seu diferencial é o olhar idôneo de Paul Greengrass, que não busca vilões e faz desta infeliz convergência de destinos uma situação cujo desfecho será trágico de qualquer modo. Se Phillips estava no local errado na hora errada, o mesmo ocorre com os somalis, pescadores famintos sujeitos à poderosas milícias que enriquecem com o fruto de seu “trabalho”. A semelhança entre eles é evidenciada na medida de suas desigualdades pelo tom documental que o diretor emprega no desenvolvimento da ação visceral, emoldurada pela belíssima fotografia analógica de Barry Ackroyd, cujo feito mais notável é manobrar as câmeras virtuosamente na agitação do alto-mar. Em um ano onde o realismo está em moda e vem bem representado por Gravidade, Paul Greengrass mostra que a experiência da vida real também pode ser tão intensa quanto a melhor das ficções, transformando a famigerada frase “baseado em fatos reais” na constatação de que a vida continua sendo, sim, o substrato primordial da Sétima Arte.
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