Os fins justificam os meios? Em "V de Vingança", sim. E é essa a maior qualidade tanto da graphic novel do genial Alan Moore quanto o filme: a coragem de escolher e defender um dos lados. Não que ele seja o correto, não que ele seja o errado. Os meios podem levar ao terrorismo, atitude repudiada pulica e mundialmente. Mas os fins podem significar a destruição de um governo baseado em mentiras, controle e crimes.
E V, o misterioso mascarado que por meio de explosões de prédios históricos, assassinatos, invasões, seqüestros e ameaças quer trazer à tona toda a sujeira do autoritário governo de uma Inglaterra num futuro não tão distante. V é um terrorista. Mas também um herói, como todos querem ver na tela grande: culto, inteligente, leal ao seus ideais, amargurado, torturado fisica e psicologicamente, furioso, vingativo, atormentado. Figura de mil faces escondido sob uma máscara sorridente. Muito tem V em comum com a personagem principal do clássico "O Conde de Monte Cristo" de Alexandre Dumas, Edmond Dantes, traído, preso e torturado injustamente, que arma e conduz uma desejosa e sagaz vingança. Não é à toa que o filme predileto de V seja, nesta película de McTeigue, "O Conde de Monte Cristo": ele projeta ali sua vingança perfeita contra os crimes do governo contra ele e outros prisioneiros.
Além de "Monte Cristo", também vemos muita influência de outra obra literária: "1984", de George Orwell, já adaptada para o cinema. A sociedade controlada, a mídia submetida ao governo ditatorial, a falta de liberdade, de pensamento, de opinião e de religião. Até mesmo a figura do chanceler - interpretado ironicamente por John Hurt, que, no filme baseado na obra de Orwell, interpreta o desertor e angustiado herói contra o sistema infalível do governo - na gigantesca tela de vídeo-conferência nos remete a amedrontadora figura do Grande Irmão do livro, sempre em cartazes e vídeos com a mesma expressão de domínio, superioridade e poder absoluto.
Mas, se no livro de Orwell, o pessimismo dá o tom, e qualquer mudança, fuga, esperança ou luta não faz o menor sentido ou diferença ou trará inspiração sobre as próximas gerações, temos aqui em "V de Vingança" o contrário, onde a figura e as ações ousadas de V incitam a população a questionar o governo, exigir seus direitos, respostas mais profundas, a combater suas sujeiras e retaliá-lo por seus crimes. E essa incitação chega ao nível máximo na última cena, onde vemos o homem tornar-se uma ideologia, e ver que todos, absoluamente todos, podem ser V, pois ele lutava por todos, não só por si, como, por exemplo, Dantes, e essa é a maior diferença entre eles.
V, interpretado pelo "Agente Smith" Hugo Weaving que nunca mostra seu rosto, é apaixonante, envolvente. O verdadeiro herói da trama, mesmo que mate e ameace pessoas. Se Weaving está ótimo em cena, deixando aquela "máscara sorridente" transparecer emoções, sentimentos (pode ser engraçado de se imaginar, mas não é o único caso: o mesmo se vê com o supervilão Darth Vader, na primeira e insuperável triologia de Star Wars), o mesmo não ocorre com os outros atores.
Natalie Portman, atriz de grande e reconhecido talento, está, vejam só, um tanto que canastra neste filme. Sua Evey é uma personagem chata, sem muita utilidade na trama, apenas contestando as ações de V. Ela seria, na verdade, o outro lado da história, que não acredita que os fins justifiquem os meios, que não aceita os assassinatos que V comete etc. O problema é que ora Evey descorda de V, ora ela concorda, é sua fiel escudeira. E essa confusão, essa inconstância da personagem a faz frágil, fraca, apática, irritante. Fora que o relacionamento dela e de V não é bem construído e desenvolvido. Tudo parece muito corrido, rápido, artificial. E, no finlal, quando ela diz ao detetive tudo o que V significou para ela, simplesmente não a entendemos, porque nada foi bem construído nessa relação. O que é uma pena, já que esta relação poderia ser explorada sob diversos ângulos: o de pai-filha, mentor-aluna, homem-mulher. O mesmo ocorre, por exemplo, nas versões cinematográficas de "O Fantasma da Ópera", onde o potencial da relação entre Christine e o Fantasma também não possui seu devido aprofundamento.
Stephen Rea também não está muito bem em cena. Sua personagem, o detetive do governo que descobre, afinal, todas as falcatruas do órgão controlador, é um grande clichê e não consegue se desenvolver muito bem. é como se, de uma hora para a outra, ele passasse a fazer parte do grupo de seguidores de V, sem qualquer explicação ou desenvolvimento correto. Fora que sua investigação é tão simplória que é difícil acreditar que ninguém tenha descoberto toda a conspiração do governo antes ou que este tenha encoberto "muito bem" seus crimes.
Mas o filme é, afinal, muito bom. O que me deixou aliviada, já que o roteiro esteve a cargo dos irmãos Wachowski. Eles - ufa! - não conseguiram destruir a história, como temia que acontecesse, uma vez que "Matrix" é um filme de muito potencial, mas que afinal revela-se oco. Nem Moore acreditava nesse filme. Na verdade, ele não credita seu nome nem se envolve com nenhuma das adatações de suas graphic novel, o que é plausível, depois do constrangimento que foi "Liga Extraordinária".
Mesmo com os pormenores, e as mãos azaradas dos Wachowski, o filme se sai bem. É uma ação de teor político concisa e madura. Madura o suficiente para optar por um lado, aceitar seus problemas e falhas, mas defendê-lo com unhas, dentes e coração, com a mesma determinação que V luta por sua vingança.
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