É inquestionável. Harry Potter é hoje uma das maiores franquias da literatura infanto-juvenil dos últimos tempos. Considerada por muitos como a obra que trouxe aos jovens o gosto pela leitura, o universo mágico e fértil criado pela escritora J. K. Rowling tornou-se uma também rentável franquia cinematográfica. O primeiro filme, "Harry Potter e a Pedra Filosofal" configura até hoje entre os maiores sucessos de bilheteria, contabilizando quase 980 milhões de dólares por todo o mundo.
É inquestionável também a influência de todo esse sucesso comercial no tom dos livros seguintes. Quando as adaptações começaram, acabava de chegar às lojas o quarto livro da série, "Harry Potter e o Cálice de Fogo", considerado por milhões de fãs como o melhor livro da série. O próprio livro, por si só, já trazia a mudança no tom da história: o renascimento de Voldemort, o grande vilão da série, personagem cuja inspiração, segundo Rowling, veio do líder nazista Adolf Hitler; o primeiro contato direto de Harry com a morte, um fato que o atormentaria e assombraria pelo resto de sua vida; o fim do clima agradável e seguro não só em Hogwarts, o "verdadeiro" lar de Potter, mas de todo o universo bruxo; o amadurecimento rápido, o fim da inocência e o preparo para uma nova guerra que estava por vir. Desde então, os livros da série tornaram-se mais sombrios, adultos e tristes. Personagens queridos pelos leitores começaram a morrer, Harry passa a comer o pão que o diabo amassou e nada parece melhorar para o trio de heróis, Harry, Rony e Hermione.
No quinto e mais longo livro, "Harry Potter e a Ordem da Fênix", de 702 páginas, temos o ápice do sofrimento e da tortura de Harry. Tortura física e psicológica, simbolizado maravilhosamente pela mais detestável personagem da séria, Professora Umbridge, isolamento, a sensação de que se está lutando contra tudo e todos sem nenhum recurso ou aliado.
Já no sexto livro, "Harry Potter e o Enigma do Príncipe", temos o ápice da tristeza e sombriedade. A perda de um ente querido, uma guerra com o Lord das Trevas declarada e, por fim, uma profecia. "Um não viverá enquanto o outro não morrer." Essa profecia sintetiza tudo o que está por vir. Todo aquele clima mais infantil e aventureiro dos primeiros filmes e livros é deixado pra trás. Para que Harry tenha paz, possa acabar com a guerra, terá que cometer o crime mais hediondo possível: matar um ser humano. Mais do que isso: vai ter que se rebaixar ao nível daquele que é seu arqui-rival, aquele que mais odeia e com quem, afinal, mais se parece. A semelhança de Harry e Voldemort é um dos maiores temores de Harry, uma fato que o atormenta. Então, toda vez que faz algum feitiço, que acaba por dizer alguma das Maldições Imperdoáveis (sempre Crucio, que significa torturar o inimigo), Harry sabe que está mais próximo dele, do assassino de seus pais.
E o filme de David Yates consegue passar todo o clima e temores do livro para as telas, de maneira magistral. É com toda a certeza o melhor filme até agora feito dentro da série, a melhor adaptação. Muitos fãs reclamaram pelas mudanças feitas por Yates dentro da trama: a falta docasal Gui, irmão mais velho de Rony, e Fleur Delacour, participante do torneio tribruxo do quarto livro e filme, que de nada altera a trama principal; a pouca atenção a outro casal, Tonkys e Remo Lupin, que durante o livro tinham sua relação amaorosa descoberta e formada, e onde aqui no filme ela já nos é entregue pronta e sem quaisquer resquícios dos obstáculos e incertezas por eles sofridos durante o livro. Mas a maior e mais detestada de todas as mudanças foi a ausência de uma cena no filme que é com certeza marcante para toda a série: o enterro de Dumbledore, morto de maneira surpreende e arrasadora.
Mas agora vou em defesa da obra de Yates. Muitos podem não concordar comigo, mas eu não considero uma boa adaptação literária para o cinema uma película que reproduz fielmente página por página de um livro, diálogo por diálogo, cena por cena. Há, claro, suas exceções, mas normalmente um filme assim costuma ser enfadonho, sem originalidade ou sem qualquer identidade própria. Foi tal artimanha utilizada por Chris Columbus nos dois primeiros filmes da série, principalmente em Pedra Filosofal. Contudo, sabemos que, se por acaso sua estratégia fosse diferente, muito provavelmente a franquia hoje não seria um sucesso, pois foi este primeiro filme que serviu de experiência para o gosto do público e crítica, que serviu de gancho para atrair fãs antigos e novos, como é meu caso. Por isso, é injusto da minha parte apenas retaliar o trabalho de Columbus, ao mesmo tempo que vejo, em comparação com as sequências feitas por inúmeros diretores pelos anos que se seguiram, os dois primeiros filmes da série parecem os mais pobres quanto a recursos narrativos e identidade pessoal. Isso porquê o cinema e a literatura propõem narrativas diferenciadas, dispõem de artifícios diferentes. Tudo em um livro é feito com palavras, alguma vezes com gravuras, mas este não é o caso. Aqui, são usadas palavras para descrever detalhadamente ações, movimentos, espaços, rostos e expressões. No cinema, temos a nosso dispor o som e o visual, imagens que se movimentam, atuações, efeitos, combinados com uma trilha sonora adequada. Não é possível, assim, que se faça uma adaptação idêntica de um livro para um filme. Cada um tem sua voz e identidade própria.
Então, quanto a este sexto filme, temos uma adaptação densa, triste e sombria do livro mais sombrio e triste da série, mais até mesmo que o último livro, bem mais. Agora, confirmado a todos que Lord Voldemort está de volta, a nova guerra no mundo bruxo fica às claras. Mortes e desaparecimentos vêm à tona a todo o instante. Até mesmo no mundo dos não bruxos, os trouxas, tais atividades podem ser detectadas, tal como demonstrado na primeira e magistral sequência do filme. Também vem à tona para Harry Potter a sua sina, seu destino, através de tal profecia, revelada ao final do quinto livro e filme. Os tristes e traumáticos eventos do quinto ano em Hogwarts tornaram Harry um jovem ainda mais maduro e até mesmo ciente e "preparado" para o que está por vir. Este livro inicia o desfecho de toda a saga, do confronto final entre Harry e Voldemort. E, para este desfecho, Harry terá que mergulhar, primeiro, nas memórias de Voldemort, desde que era uma criança de estranhos poderes aprisionaa em um orfanato, até se tornar um jovem aluno brilhante, promissor, mas também dissimulado, ambicioso e perigoso. A partir dessa memórias, Harry encontrará a chave para a destruição de Voldemort, mas isso não significa o fim da tarefa, pelo contrário, é o início de uma trajetória tortuosa e desgastante, uma série de provas e investigações que pouco lembram as leves e divertidas diabruras dos primeiros livros. Muitos reclamam que Harry Potter cresceu e se tornou mais sério e sombrio, mas isso é inevitável. Harry e sua turma cresceu, Hogwarts perdeu seus encantos infantis. Tudo vem com um gosto mais amargo.
Nessa fase de mudança, temos também o surgimento dos típicos conflitos adolscentes: o ciúme, o sofrimento por amor, a descoberta de uma nova paixão. Neste último, temos Harry e Gina. A paixão do protagonista por Cho acabou, e ele começa a sentir algo diferente pela irmã de seu melhor amigo, que começa a se tornar uma jovem mulher e uma bruxa talentosa. Ela começa a namorar, a chamar a atenção dos rapazes, a sofrer desilusões amorosas e isso consome Harry. E a paixão começa a aflorar também entre Rony e Hermione. O ciúme, o sofrimento por amor - em outra cena maravilhosamente bem dirigida por Yates, envolvendo Emma Watson, cada vez mais encantadora e boa intéprete, e alguns pássaros digitais - e a final declaração de amor. O relacionamento de Rony, o também ótimo Rupert Grint, com um outra garota, Lilá Brown, é a grande comédia do filme, arrancando muitos risos pelo triângulo amoroso formado pela racional e ao mesmo tempo emocional Hermione, pelo engraçado e atrapalhado Rony e pela escandalosa Lilá, maravilhosamente interpretada, divertindo com seus exageros. O mesmo não se pode dizer daquele que se tornou o casal principal da trama. Daniel Radcliffe está aprendendo os nuances e sua atuação só melhora a cada novo Harry Potter, mas falta química entre ele e Bonnie Wright, a intéprete de Gina. Isso ocorre mais por uma diferença entre o desenvolvimento da atriz e da personagem: Bonnie pouco convence como a charmosa e encantadora garota que Gina Weasley se tornou bem a frente aos olhos de Harry. A atriz não traz as mesmas surpresas e não consegue carregar o mesmo charme que a personagem começa a trazer para a trama. Diferente de Cho, a quem Harry idealiza como um ser quase que superior, Gina torna-se sua paixão e desejo impossíveis, por ser irmã de seu melhor amigo. Harry chega a ter sonhos com Gina, mas tamanha paixão não é vista no filme e, assim, o casal Rony e Hermione rouba a cena novamente.
Outro personagem que literalmente cresce e aparece neste filme é Draco Malfoy. Ele também passa por um tortuoso processo de amadurecimento. Se antes era apenas um menino mimadinho, Draco agora surge como um vingador da prisão e declínio de seu pai, um seguidor de Voldemort, associando-se ao Lord das Trevas. Ganha uma missão a partir disso, e daí começa aquilo que será seu grande desafio. Draco começa a jornada acreditando piamente ser capaz de inúmeras maldades tais como os amigos de seus pais, mas a sua consciância não o permite, fazendo dele um personagem dominado pelo medo, pela incerteza e por suas escolhas errôneas nesse filme. Tom Felton faz um grande trabalho aqui, merecendo um grande reconhecimento. aqui, o personagem ganha mais densidade, mostrando seus conflitos. Um grande avanço.
Mas a grande conquista de Yates em seu filme foi conseguir transpor, dessa vez bem fielmente, o clima visto no livro. Como disse, é o livro mais triste e sombrio da série, onde mesmo havendo seus momentos ternos, seus momentos cômicos, é um livro triste. Não é, como nos anteriores, um livro esperançoso, alegre, com momentos de recaída, de tristeza, medo e sombriedade. É um livro sombrio com pequenos ápices de felicidade e diversão. E o diretor assim o consegue: as cores do filme todo, das vestimentas, dos cenários, são sempre mais sóbrias. Não se vê o mesmo colorido dos filmes anteriores, como em Pedra Filosofal. Basta comparar os dois filmes. Os cenários tmbém estão diferentes, principalmente Hogwarts. Antes, os feitiços, os fantasmas e as surpresas que guardavam o castelo eram uma grande diversão. Aqui, Hogwarts não carrega mais esse caráter divertido. É apenas um castelo grande, velho e por vezes sombrio. Nada mais. Até mesmo as partidas de Quadribol, antes uma grande aventura em área aberta sob um dia ensolarado, agora são rápidas, secas, sob um dia nebuloso e frio.
Como último comentário sobre o filme, falo sobre uma das melhores cenas do filme. Se aqui faltou o enterro de Dubledore, um dos personagens mais queridos da série e, especialmente nesses filme mais melancólico, muito bem interpretado por Michael Gambon, Yates nos presenteia com uma cena emocionante, de arrancar lágrimas, do momento da morte do diretor, onde todos fazem sil~encio e erguem suas varinhas para o céu. Uma demonstração simples e muda daquilo que fãs nos cinemas e nos livros sentiram, um momento de respeito e tristeza. Simplesmente sensacional.
O trabalho de David Yates foi muito bem recebido por boa parte da crítica e público, tanto que ele é o diretor das duas partes de Harry Potter e As Relíquias da morte. Fico feliz com isso, pois adorei o seu trabalho nesse filme. Este sexto livro nunca foi meu predileto, mas o filme de Yates me fez observar detalhes e nuances da trama que me fizeram apreciá-la mais. Hoje, respeito muito mais o livro graças ao filme. Tal como Emilio Franco Jr. disse em sua crítica, este sexto filme é sem dúvida o melhor da saga.
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