"Cantando na Chuva" é uma verdadeira pérola não só entre o gênero musical, mas no cinema em geral. Tecnicamente bem feito, dispõe de números de canto e de dança sensacionais, personagens divertidos e carismáticos (com atores em atuações idem) e uma história simples, bem desenvolvida e com muita relevância histórica (ao menos para história do cinema): o surgimento do cinema falado, seu crescimento, paralelo ao declínio do cinema mudo, que levou junto muitos atores e atrizes que não se adaptaram a essa nova (e permanente) fase.
Tal efeito não é de se estranhar. No cinema mudo, a falta de falas mais complexas restringia os atores à atuação gestual, por vezes gestual demais. Afinal, como comunicar-se com o público se não se pode emitir som algum. É um verdadeiro show de mímica. Vendo hoje, essas atuações exageradas e caricatas são no mínimo burlescas. Dou como exemplo a primeira adaptação do clássico romance de Gaston Leroux - que muitos anos depois tornar-se-ia um musical da Broadway de sucesso pelas mãos de Andrew Lloyd Webber - "O Fantasma da Ópera" de 1925. Destaco a atuação de Mary Philbin como a mocinha Christine Daae. Seus gestos e caretas demasiadamente exagerados tornaram a sua atuação risível, prejudicando o clima sombrio do filme (que não é lá muito bom).
Retomando o assunto, o fato dos filmes tornarem-se falados contituiu um desafio bem maior que aparenta para nós, nos dias de hoje, que vemos como desafio acompanhar os filmes mudos com tais atuações exageradas. Os estúdios, diretores e produtores logo tiveram que comprar aparelhos e microfones, contratar roteiristas para escreverem as falas, enfim, mudaram radicalmente a forma como faziam e produziam seus filmes para seguir a tendência e agradar o espectador. Muita gente declinou, enquanto muitos cresceram. Foi um período conturbado e marcante para o cinema. E é justamente sobre essa dura adaptação e mudança por qual passaram muitos estúdios, atores e diretores que trata "Cantando na Chuva" que, sob o manto de um musical, aprofunda mais esse cenário aos espectadores da década de 50 até os dias de hoje.
A trama acompanha a transição de dois grandes astros do cinema mudo, os "queridinhos da América" Don Lockwood (Gane Kelly, que dirigiu este filme ao lado de Stanley Donen) e Lina Lamont (Jean Hagen, em uma fantástica atuação indicada ao Oscar).A adaptação ao cinema falado mostra-se um desafio principalmente quando Don e seu inseparável amigo Cosmo Brown (Donald O'Connor) propõe ao estúdio que produza um musical para a sua estréia nessa nova fase do cinema. O problema é que, paralelo a Don, que canta e dança muito bem, Lina, apesar de bela e querida pelo público, tem uma voz de taquara rachada insuportável além de uma dicção horrível. Se o estúdio, ciente disso, nem permite que ela fale ao vivo, imagine cantar em um filme! E, claro, Lina não pode ser simplesmente substituída. Ela tem a atenção, o carinho e a identificação do público, além de ser o único par romântico que os espectadores viram (e aceitam) de Don. Lina e Don formam, juntos, o potinho de ouro no final do arco-íris para o estúdio, por causa do carinho e assédio do público.
A solução que o estúdio encontra, então, é dublar Lina. E a escolhida é Kathy Selden (Debbie Reynolds), uma atriz iniciante que faz pontas em diversas produções, mas cujo talento e beleza fazem ela brilhar ainda mais. Além disso, Kathy possui uma voz linda, perfeita para a delicadeza da personagem que Lina interpreta no filme. Mas, a esta altura, Don se apaixonou por Kathy e Lina, que gosta de Don e nunca foi correspondida, cega de ciúmes, obriga o estúdio a tirar os créditos de Kathy no filme e ainda obrigar a jovem atriz a só dublar Lina durante o período de seu contrato e mais nenhum trabalho. Don, então, com a ajuda de Cosmo, tentará revelar a todos a farsa de Lina e o talento de Kathy.
Saindo da sinopse muito original do filme, tratemos agora de seus outros aspectos. Apesar de ser um musical, o filme não é inundado de canções, uma após a outra. Mas as canções, quando surgem, vem nos momentos corretos e sempre são acompanhados de coreografias singulares e divertidas. Digo singular pois todas envolvem o sapateado, que hoje não é tão popular e fora injustamente esquecido. Não há como esquecer a dança e a canção "Singin' in The Rain", uma das cenas mais antológicas e marcantes do cinema. Também chamo a atenção para a alegre "Good Morning", interpretada pelo afinadíssimo trio Kelly+O'Connor+Reynolds. As roupas, e os cenários são caprichados e cheios de estilo, lembrando a elegância francesa (no caso, americanizada) da época.
Os personagens, condecorados com atuações gratificantes, são um capítulo à parte. Nenhum deles cai no estereótipo e são muito carismáticos. Don faz o tipo galã, mas não cafajeste, que acaba se mostrando menos egocêntrico do que aparentava e mais inseguro e sensível às críticas. No papel, Gene Kelly não só convence, mas também interage com o público. Sua atuação animada e divertida faz com que torcemos por Don.
Kathy, apesar de ser a mocinha, de boba e ingênua ela não tem nada. Tanto que logo que conhece Don, ao invés de cair aos seus pés como qualquer fã, mostra-se inabalável e chega até questionar o talento de Don como ator, o que abalo o galã. Debbie Reynolds fez uma atuação, graciosa e delicada, sem nunca deixar Kathy chata ou melosa demais. fez dela uma mocinha genuína, verdadeira, real.
Cosmo é o fiel amigo de Don, mas não seu escravo, e sim companheiro. Os dois se respeitam mutualmente e Cosmo sempre ajuda Don a resiolver impasses na carreira e no campo pessoal, além de animar o amigo com suas cenas de humor. Donald O'Connor também achou o equilíbrio, fazendo um Cosmo engraçado sem ser apelativo, adorável sem ser irritante.
E, para fechar com chave de ouro a descrição dos personagens, temos Lina Lamont, a famosa atriz de péssima voz. Ao contrário da maioria das vilãs, que acaba com a vida de todos e destila veneno por onde passa, quase a verdadeira encarnação do Mal, Lina é uma antagonista divertida, pois além da péssima voz que a atriz Jean Hagen manteve durante todo o filme, ela se mostra por vezes burra, sem prestar atenção nas coisas, não entendendo (ou não querendo entender) que Don nada quer com ela. Jean realmente fez um trabalho excelente. Criou uma vilã egocêntrica, mas adorável que conquista o público com suas (muitas) passagens cômicas. Merecia o Oscar de Melhor Atriz ao qual foi indicada em 1953.
"Cantando na Chuva" é um dos mais importantes filmes do cinema, figurando sempre entre os melhores filmes já feitos, como a exemplo da revista francesa Cahiers du Cinéma (7ª posição num ranking de 100); da revista britânica Empire (8ª posição num ranking de 500); e do respeitado American Film Institute (10ª posição num ranking de 100). Tudo isso graças à sua mistura perfeita de números musicais encantadores, personagens charmosos, atuações esplêndidas e um roteiro simples, mas bem escrito, destacando uma importante fase do cinema. Um verdadeiro clássico.
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