Os irmãos Wachowski ganharam a fama ao dirigirem “Matrix” e suas continuações. O primeiro é um dos maiores ícones da ficção científica dos anos 90, exalando filosofia pós-moderna e conquistando uma legião de fãs (suas continuações nem tanto). Cinco anos depois de “Matrix Revolutions” lançaram “Speed Racer”, baseado na série de animação japonesa homônima. Provavelmente as luzes coloridas e psicodélicas a que os diretores resumiram a série não agradaram o público, pois o filme arrecadou pouco menos da metade do que custou. E o fiasco parece estar se repetindo com “Cloud Atlas”, nome original de “A viagem” (mais um título preguiçoso e genérico de nossas distribuidoras brasileiras), que custou cerca de US$ 100 milhões.
É preciso admitir que a premissa é intrigante. Algo como um efeito borboleta, só que mais amplo, inferindo que um gesto de amor ou de ódio realizado em algum lugar no passado repercutirá na vida de outras pessoas e na própria alma de quem o fez muitos e muitos anos depois. Para isso apresenta seis histórias, de certa forma conectadas, demonstrando o percurso de várias “almas” ao longo do tempo e sua evolução. Por exemplo, uma pessoa que, no século XIX, deu um dos primeiros passos para a abolição dos escravos, demonstrando sua empatia com a liberdade apesar da relutância inicial com a ideia, retorna em outro corpo mais de 300 anos depois como um ferrenho lutador para libertação de um grupo oprimido, sendo capaz de dar a própria vida pela causa. Foi uma “alma” que evoluiu para melhor. Outra “alma” passa de escravagista para matador de aluguel, enfermeira que maltrata velhinhos e a própria imagem do diabo; ou seja, esse involuiu, regrediu. E uma moça que lutou pela liberdade tornou-se uma deusa para um povo de um futuro apocalíptico.
A ideia é relativamente simples e até razoavelmente conhecida do grande público, já que usa conceitos de reencarnação (observe que uso o termo “alma” para contar o percurso de alguns personagens no filme). O grande erro de Cloud Atlas, que talvez tivesse tudo para ser um filme grandioso, é dialogar mal com seu público e, principalmente, fugir do próprio lema que apresenta: “tudo está conectado”. O filme foi mal-realizado desse ponto de vista. De fato, pouquíssimas coisas estão conectadas, dificultando seu entendimento e a compreensão de seu mote central. Não li o livro, e posso até estar errada, mas o ideal para que o espectador compreendesse a história era que os personagens tivessem conexões mais fortes, que fizessem maior sentido. Quando vemos a reencarnação em um filme ou em uma novela (com o perdão do exemplo) dois personagens que são inimigos numa vida passada voltam no futuro com uma dívida a cobrar, novamente inimigos, até que a pendenga se revolva; e o mesmo vale para amigos ou um grande amor interrompido. Isso praticamente não existe em Cloud Atlas.
Ora, as poucas conexões existentes entre um ou mais personagens não se repetem e acabam se diluindo no meio de tantas histórias e informações, sendo vagamente percebidas. Fortes amizades, amores ou mesmo inimizades não mostram padrão, fazendo-nos questionar a qual conexão o filme está se referindo afinal. Ele se limita a mostrar a jornada de várias almas sem explicar o porquê de um caminho ou outro ter sido tomado, por que uma evoluiu e outra piorou. Suas conexões são tão vagas que algumas pessoas que viram o filme sequer perceberam que ele falava de reencarnação (e são pessoas que podem ser consideradas instruídas). E alguns personagens aparecem tão rapidamente, são tão mal desenvolvidos, que você sequer tem tempo de perceber que ele apareceu em outro arco. A película não consegue resolver nenhum desses problemas em 3 horas de duração, fazendo com que as 6 histórias pouco (ou nada) tenham a ver uma com a outra, exceto pelo livro relativo à primeira história aparecer segurando uma mesa no arco 2 ou um filme sobre os velhinhos fugitivos fazer sucesso no futuro. São pequenas coisas, tão sutis, que não adquiriram a importância que o roteirista provavelmente esperava.
A parte técnica é muito boa, com destaque para a montagem. Os efeitos visuais, especialmente no futuro de Somni, são muito bons e enlevam. As maquiagens, no entanto, por vezes ficaram um pouco toscas e, mais uma vez, prejudicam que o espectador identifique as poucas “conexões” (tanto que precisa explicar no final da película “quem é quem”). Talvez precisasse ter pesado um pouco menos na mão para que as pessoas pudessem reconhecer as almas em suas variadas jornadas. O destaque fica para algumas atuações, como de Donna Bae, Hugo Heaving, Jim Broadbent e Ben Wishaw. Tom Hanks está apagado e Halle Berry só tem dois personagens importantes, mas que pouco convencem. Hugh Grant, apesar de ter vários personagens, é sempre ele mesmo.
"Cloud Atlas", o livro, não é inexequível como alguns defendem, ao menos em minha opinião. Se foi realizado fielmente à obra literária, algumas sérias modificações precisariam ser feitas para as conexões ficassem mais palpáveis. O problema é pouca coisa estava conectada e, por conseguinte, o espectador, em sua maioria, também não conseguiu se identificar e apreciar a(s) história(s). Ou seja, o filme não convenceu a maioria das pessoas. Mas para quem conseguiu deixar-se sorver pela ideia (mesmo que vaga), a experiência foi certamente deslumbrante e o filme, apesar da duração, não foi cansativo. A película tem cenas lindas, de cinema puro. Frobisher e Sixmith jogavam louças e objetos para o alto, que voavam e caíam em câmera lenta, quase com vida própria... Autua subindo no mastro do navio, como se dele fizesse parte, e pulando para hastear a vela... Até mesmo quando o autor de um livro que encalhou nas prateleiras, furioso porque um crítico mostrava-se como motivo do fracasso, tomou uma atitude impensável e surpreendente... Tudo era humano, demasiado humano, e tão cinema como só o cinema poderia ser. "Cloud Atlas" tem muitos problemas, mas não deixa de ser uma experiência de cinema, de humanidade (e espiritual, para os que acreditam), única.
"Nossas vidas não são nossas. Estamos vinculados a outras, passadas e presentes. E de cada crime, e cada ato generoso nosso, nasce nosso futuro."
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