A abordagem do personagem Sherlock Holmes no cinema através da ótica do cineasta inglês Guy Ritchie não recorre a figura fidedigna criada por Sir Arthur Conan Doyle e esse fato gerou críticas dos admiradores do Sherlock “convencional”, além de ter sido recebido com um ar de decepção pelos críticos especializados em sétima arte.
Deve-se considerar que o ponto nevrálgico dessas desaprovações em relação ao protagonista do filme estão intrinsecamente atadas a memória nostálgica de uns, a dificuldade de muitos em entender o quão é complexo transpor uma linguagem literária para a linguagem cinematográfica e enfim para outros a resistência em aceitar mudanças.
Então se faz essencial ressaltar as principais características do famoso detetive conforme seu criador Doyle: pesquisador assaz e detentor de consistentes conhecimentos de química, nas relações é um homem seco e objetivo, preza pela lealdade, amante de boa música e que recorre aos dispositivos de laboratório para encontrar na ciência as respostas para solucionar seus casos e ainda conta com seu violino, seu inseparável cachimbo, uma memória privilegiada capaz de aguardar por longo tempo a fisionomia de alguém que conheceu há anos (especialmente criminosos) e o talento para compor seus disfarces, sua morfina, além de ser um mediano boxeador capaz de se sustentar em uma luta com oponentes de categoria regular.
O detetive Sherlock é metódico quando chega ao local do crime, esmiúça, fareja, remexe, coleta cinzas e papéis, assovia baixinho parecendo refletir de maneira descontraída perante o caso aparentemente insolúvel.
O seu fiel companheiro Watson segue tudo de perto intrigado e bestificado com o talento do anguloso Sherlock Holmes.
E na construção fílmica de Ritchie o Sherlock não sofre alterações tão profundas para deixá-lo tão irreconhecível no filme, pois mesmo que com uns toques de exagero em determinados aspectos e algumas mínimas discrepâncias é possível ver os pontos principais do Sherlock genuíno.
A trama da obra cinematográfica é fiada a partir de um sacrifício de uma garota envolvendo magia negra e os crimes que se sucedem mediante o transcorrer da história tendo como vilão Lorde Blackwood (Mark Strong). E a partir desse argumento o conteúdo diegético do filme fica centrado numa discussão entre o que é mito e o que é ciência, entretanto essa premissa que compõe o suspense não foi tecida com maestria suficiente, pelo contrário sua utilização está envolta em fragilidades e obviedades argumentativas.
Avalia-se que essencialmente o roteiro não foi bem elaborado e não se sustenta mesmo se fazendo valer de uma dicotomia tão rica abrangendo mito e ciência; a primeira associada ao senso comum ligada a uma intuição compreensiva da realidade sendo uma forma espontânea de o homem situar-se no mundo sem exigências de comprovação porque seu critério de adesão é a crença e não o racional. Já a ciência exige o senso crítico a partir de análise e métodos rigorosos, ou seja, o conhecimento cientifico é entendido como único critério aceito como verdade legitima e inconteste admitindo validade a partir de um conhecimento cientifico embasado num conjunto ou sistema organizado de conhecimento empírico e conclusivo.
A obra do diretor Guy Ritchie é valorosa enquanto cenário com estupendas tomadas de um clima londrino elegante com suas roupas e carruagens e sombrio com seus becos e sarjetas, também conta com deliciosas sacadas humorísticas contra a moral vitoriana e ao mesmo tempo abusa de maneira competente das cenas de ação.
Os atores Robert Downey Jr e Jude Law desenvolvem suas perfomances em grande estilo mesclando diálogos ácidos e sarcásticos a charme, carisma e muita adrenalina nos momentos mais movimentados do filme.
O cerne da questão sobre a falta de êxito do filme Sherlock Holmes proposto por Ritchie gira em torno da figura do protagonista que nessa película não recorre tanto ao seu astuto raciocínio lógico fazendo-se onipresente muito mais pelos seus músculos, ainda assim esse mote é bem tecido com ligeireza de cenas grandiosas e lutas empolgantes, no entanto erra grosseiramente no desfecho que é apenas um “lugar comum” largamente utilizado no cinema e por isso não é nem um pouco convincente.
Então o problema não parece ser nem saudosismo nem tão pouco o medo de mudança de um personagem tão vívido e sim uma visão rasa e pouco envolvente enquanto trama.
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