Estava com um péssimo pressentimento com o que viria pela frente logo que o título apareceu. Isso porque acabara de ser apresentado o prólogo. Bonito, sem dúvida, mas de uma masturbação artística incômoda. Eis que o filme começa de fato, e tudo muda. Após o prólogo, o filme é dividido em duas partes, que parecem pertencer a filmes diferentes e ao mesmo tempo se completam. As partes são nomeadas de acordo com os nomes das duas irmãs protagonistas: Justine e Claire.
Justine é triste por natureza, tem consciência de sua existência e da falta de importância da mesma. Na primeira parte, que se passa durante sua festa de casamento, acompanhamos uma Justine que ainda tenta enganar aos outros e a si mesma. Já na segunda parte, que se passa nos dias precedentes a passagem de um planeta pela terra, vemos uma Justine autêntica, melancólica, irracional em sua racionalidade. “Pare de sonhar Justine”, diz sua mãe Gaby, e ela para.
Claire é a personificação do ideal de mulher comum, portanto perfeita. É amorosa, educada, metódica, responsável e dedicada a sua família, em suma, humana. Apesar de somente a segunda parte levar o nome de Claire, pode-se dizer que vemos o filme através de seus olhos. Assim como Claire, sentimos desconforto quando Justine despreza e desconstrói o que seria aceito pelo senso comum: Trai o marido horas depois de ter se casado, abandona o casamento na própria festa, demite-se após ser promovida no trabalho. Ao passo que Claire luta até o fim da segunda parte para manter sua vida sobre os padrões considerados normais. “Os rituais” sabiamente nomeados e repudiados por Gaby.
Justine mostra a nós expectadores, e a Claire, que podem-se criar regras, segui-las fielmente, mas nada disso irá impedir que a vida cumpra a única certeza a nós imposta: A finitude da matéria. Seja através do suicídio, da morte natural ou de uma terrível catástrofe. E é no ponto em que tudo isso fica claro que o filme se torna desesperador, sufocante. O público tem vontade de gritar, mas não o faz, espera tenso pelo que tem a ser mostrado. O final se aproxima. Os pelos erriçam-se, os olhos se arregalam e a respiração é presa. É triste ver a beleza do final, ao saber que não poderá ser contemplada de tal maneira quando o fim de fato chegar. Os créditos começam e o público ainda demora a se mexer. Atordoados, saem da sala de exibição a passos lentos e cambaleantes, trocando olhares com misto de pena e compreensão.
Lars Von Trier exterioriza sua temática com primor. Os desprezo pelas convenções por sua falta de importância não se aplica só a Justine, mas também aos planos, os movimentos de câmera, as transições entre planos, a montagem final e as próprias atuações em si. Tudo foge do que é comumente aceitável. Mas não se enganem, é tudo belíssimo. O que cria duas possibilidades: Ou a câmera possui uma bizarra sensibilidade, ou Trier é uma criatura perversa, genial e manipuladora. Fico com a segunda opção.
Charlotte Gainsbourg esta esplêndida no papel de Claire. Charlotte se mostra familiarizada com a câmera de Trier, e dança junto com ela em uma atuação segura e poderosa. Kirsten Dunst, até então considerada uma atriz mediana, revela-se capaz de criar Justine, uma personagem fora do comum e ao mesmo tempo palpável. De forma magnífica, Dunst entra para a sala de troféus de Trier, que conta com Charlotte Gainsbourg (Por Antichrist), Nicole Kidman (Por Dogville) e Björk (Por Dancer In The Dark).
Na pele de John, marido de Claire, Kiefer Sutherland desempenha com brilho o típico homem rico, que acredita que o mundo gira em torno do próprio umbigo. Enquanto John Hurt interpreta o pai das irmãs com um humor soberbo, que arranca sorrisos da platéia em meio aos momentos mais obscuros. Charlotte Rampling é outra coadjuvante que se destaca, sua Gaby chega a parecer uma Justine mais velha e sincera. No entanto, somos levados a crer que seu ponto de vista se dá através rancor, e não de um instinto natural com o de Claire.
Lars Von Trier é um cineasta conhecido por muitos como fetichista e pretensioso, mas muitos dos seus algozes teriam de admirar a respeitável sobriedade com que Trier trata o personagem infantil da trama: O filho de Claire. A olhar puro do personagem sobre o mundo, e a forma como é poupado de toda a sujeira dos adultos, é louvável tendo em vista o caos criado por Trier. Mesmo que o personagem tenha conhecimento do fim, ele o encara como uma criança normal, com uma espécie de bonita naturalidade.
Não há como falar de Melancholia sem deixar de citar a fotografia estranhamente harmoniosa, tendo em vista a câmera instável e incerta de Trier. São impecáveis, a iluminação amarelada da festa (Que lembra em alguns momentos iluminação por velas) e a projeção azulada do planeta sobre os personagens. A naturalidade fotográfica criada em meio ao que poderia se chamar de sobrenatural, dado o contexto incomum em que o filme se insere, é obra de mestre.
Melancholia é um grande filme em todo o seu conjunto. Capaz de fazer refletir por horas a fio. O que obviamente só aumenta a aflição por ele deixada. Lars Von Trier é direto: O fim é um fim em si mesmo. Ou algo do gênero. O que importa é que depois que o filme termina, não há mais como se ver o mundo com os mesmos olhos. Melancholia é acima de tudo, inquietante e perturbador.
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