O terceiro longa-metragem de Xavier Dolan retrata o lento processo de transformação de um homem em mulher. Nascido em um corpo que julga não ser o seu, o personagem entra em um processo de mudança, trazendo junto à si problemas para ele e para aqueles que o amam. Em meio à isso, vemos os altos e baixos de seu relacionamento com a namorada/esposa, colocando à prova os limites de seus sentimentos, consciências e desejos físicos.
Como em seus filmes anteriores, Dolan se mostra competente na criação de personagens fortes e situações ao mesmo tempo absurdas e mundanas, de forma muito mais orgânica do que um certo espanhol tem feito ultimamente. A articulação narrativa de Dolan aqui se faz mais louvável do que em seus filmes anteriores ao conseguir prender a atenção do espectador por quase três horas, sem barrigas. O processo é árduo, de fato, mas em momento algum parece desnecessário. Da mesma forma, não é criada aquela cruel sensação de que o filme está acabando, quando se ainda tem mais vinte ou trinta minutos de filme. Ao invés disso, Dolan parece fomentar cada vez mais a expectativa. Quando o fim chega, sabemos que é o fim e ponto.
Isso não seria possível, logicamente, sem atuações que segurassem personagens tão complexos e que não estivessem à altura umas das outras. Melvil Poupaud dá solidez ao personagem título, mas quem rouba à cena mesmo é a sua companheira de cena: Suzanne Clément. Clément dá vida à sua personagem de forma voraz. Não teme o exagero melodramático ou o longo silêncio, conseguindo criar nunces incríveis em sua personagem, fazendo com que a mesma domine à tela quando em cena. Já a sempre bela Nathalie Baye nos delicia no papel da mãe da Laurence, uma mulher ao mesmo tempo repugnante e doce.
De todos os recursos maneiristas guiados pela ótica de Dolan, o mais orgânico é a direção de arte, que compõe muito bem os espaços percorridos pelos personagens. Aqui o exagero ganha força à nível diegético, alcançando ao mesmo tempo o belo e o utilitário. Também motivo de elogio é o desenho sonoro do filme, que articula de maneira potente à eclética trilha sonora e brinca com os efeitos sonoros típicos do cinema clássico narrativo, isso sem abafar os diálogos em gritos que saem constantemente da boca dos personagens.
Se em Eu Matei Minha Mãe (J'ai tué ma mére, Canadá, 2009), Dolan conseguiu dosar seus maneirismos, e em Amores Imaginários (Les amours imaginaires, Canadá, 2010) perdeu completamente à mão, em Laurence Anyways ele peca novamente pelo excesso. Entretanto, nesse último o jovem diretor canadense demonstra talento na articulação de seus exageros, fazendo com que esses soem menos gratuitos que nas obras anteriores. Entretanto, o uso gratuito de câmeras lentas e a inserções de elementos supostamente artísticos/surrealistas ainda irritam - e muito. Quanto à fotografia que abusa da iluminação colorida, é melhor nem falar nada...
O que Xavier Dolan não vê é que tudo isso ofusca o que há de mais brilhante em seu cinema: a articulação consistente da narrativa junto à mise-en-scène de forma à trazer a primeiro plano questões mais do que profundas, necessárias. Para a satisfação do maldito, e da nossa, em Laurence Anyways é o forte e o potente talento de Dolan que prevalecem. Apesar de tudo, não há como discutir, seu cinema é de uma força pouco vista.
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