Foi polémico para a sua época e criticado pela sua excessiva violência, e porque, na opinião dos censores, tinha um final que glorificava o criminoso em relação à Lei e Ordem (o que levou à produção acrescentar o título sugerido pela equipa de censura, «The Shame of a Nation»). O «Scarface» original data de 1932 e deixou um impressionante legado para as gerações de cinéfilos vindouras (e foi o filme americano preferido de Jean-Luc Godard num top que o cineasta elaborou em 1963, nos primeiros anos da sua carreira como realizador), que ficou, em parte, apagado pelo ainda maior fenómeno cultural que se tornou o remake escrito por Oliver Stone, realizado por Brian de Palma e protagonizado por Al Pacino, em 1983. Apesar de ser muito mais agressivo, anárquico e violento e conhecido que o original, seria injusto estabelecer comparações entre os dois filmes, mas é algo inevitável: são completamente distintos, quer na forma quer no conteúdo, e apenas podemos encontrar semelhanças em alguns pormenores e "subplots" da narrativa (como a célebre frase "The World Is Yours") e na estrutura da história (como um percurso de ascensão e queda da personagem principal, o gansgter Tony Camonte, em 1932, e Montana, em 1983). Estão separados por cinquenta e um anos, e ambos refletem, à sua maneira (e tendo em conta os gostos das audiências na moda nas suas épocas de estreia), os objetivos do Cinema da sua época, e o sonho americano que todos cobiçam, mas que tão poucos conseguem alcançar. Ah, e ambas as versões recorrem a abusos visuais e narrativos, que por vezes são mais aturáveis, e noutros momentos nem tanto.
Mas centremo-nos no «Scarface» de Hawks, uma amostra daquilo que viriam a ser os melhores filmes que esse realizador faria nos anos seguintes (como «Rio Bravo» e «À Beira do Abismo»), onde a ação e a imaginação se combinam para dar ao espectador uma experiência inesquecível e única no Cinema Americano. Tal como outros filmes de gangsters neste período dourado do Cinema, no meio da violência e da vida dos criminosos, tenta-se alertar as pessoas para os problemas e para os malefícios do crime (daí foram impostas algumas alterações a este filme pelos Censores...). E se Francis Ford Coppola decidiu não introduzir, em «O Padrinho», indivíduos italianos que "talka laika diz" (ou seja, personagens de origem italiana que sejam estereotipadas), foi porque teve como exemplo a forma exagerada (e para os nossos dias, chega até a ser cómica) como Tony Camonte e os seus compadres sicilianos se expressam em «Scarface», e que desagradou o cineasta. O Tony de Paul Muni é mais simpático, brejeiro e folião que o de Al Pacino, sendo uma recriação da figura do bandido clássico que dá o ar da sua graça de quando em vez, mas ambos são estereotipados à sua maneira. E pode ser uma peça muito datada para o nosso tempo, mas ninguém pode tirar o soberbo entretenimento que Howard Hawks soube tão bem jogar no filme. Uma obra histórica e surpreendentemente sensível (isto se tivermos em conta o padrão dos filmes de gangsters dos anos 30 - o lado emocional só começou a ser mais utilizado um pouco mais tarde, com títulos como «Anjos da Cara Negra», uma história de crime mas também de amizade, e «Fúria Sanguinária», sobre o carinho que um gangster tem da sua Mãe), e educativa, por querer incutir às pessoas que não devem seguir os exemplos dos heróis da tela. Infelizmente, para a perspetiva atual, a violência de «Scarface» é caricaturável, grotesca e com menos impacto do que em 1932, e a violência tornou-se um objeto de culto do Cinema, que é cada vez mais aprofundado com o passar das décadas (veja-se o ultra-abuso de truques cinematográficos e cénicos que de Palma utiliza para fortificar a imagem descontrolada e "drogadamente" intensa do seu Tony Montana). Mas se nos rimos mais hoje com o «Scarface» original do que seria suposto no ano em que estreou, não é por isso que o filme sai desvalorizado.
«Scarface» não é só, por isso, uma peça curiosa de Cinema porque podemos ver uma das experiências iniciais de um realizador que se tornaria um dos melhores do ramo daí a uma década ou menos, nem só também pelo seu lado "arqueológico" e pela importância que teve para a História do Filme. A história deste confronto com a autoridade por um criminoso que sobe, sem olhar a meios, na hierarquia do Poder do submundo, continua a ser muito relevante e genial em termos de entretenimento, de montagem e de eficácia dramática. Permanece um retrato entusiasmante sobre a transfiguração psicológica de um homem, que provoca a sua própria queda no seu mundo ao perder o controlo de tudo. Tanto o original como o remake possuem os seus exageros, temperados de maneira especial, e que são propositados - afinal, estamos a ver uma história de criminosos, e exagero é o que não falta de pessoas assim, como os dois Tonys que lutam para superarem todos aqueles que lhes querem cortar a passagem na escalada da ilegalidade. Já merecia um restauro decente, este clássico marcante dos EUA, que apesar do seu amadorismo e das inconsistências que a perseguem, mantém-se como um bom filme, e uma peça cinematográfica de conhecimento essencial para qualquer cinéfilo.
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