Mr. Turner: a vida e a época de um pintor pelo olhar de Mike Leigh
Timothy Spall protagoniza este biopic pouco convencional, num desempenho que lhe valeu o prémio de Melhor Ator na ultima edição do Festival de Cannes. Mr. Turner é o relato preciso dos últimos 25 anos de vida do pintor Joseph M. W. Turner, que testemunhou grandes mudanças na sociedade britânica do seu tempo, que acabaram por influenciar o seu trabalho, e o rumo cada vez mais atribulado da sua vida.
Um artista irreverente, que acabou por ser vítima das mesmas circunstâncias que o tornaram célebre no meio cultural britânico: presenciando uma época marcada por várias transições sociais (e mesmo tecnológicas), acompanhamos as deambulações de Joseph Turner entre críticos e admiradores da sua arte, a conviver com o seu amado pai (o maior de todos os fãs) e com a governanta (com a qual mantém uma obscura relação). Paralelamente, vemos a vida de Turner fora de circuitos tão íntimos, e passamos para a sua importância na vida social da época. Mas o que sobrevive mais na nossa cabeça: a psicologia complexa desta personagem, ou as suas jogadas estratégicas para conseguir sempre vencer, e dar nas vistas entre os seus pares?
Turner movimenta-se entre todas as classes da hierarquia para se “formar” como personalidade de elevada importância, obtendo um grande sucesso entre as elites cultas. Mas a fama não irá impedir que ele seja alvo de algumas maledicências injustificadas e de um certo desprezo, numa sociedade pontuada pela importância do status e das modas, e que tenta impedir a inevitável decadência da sua estrutura. E aí, e tal como acontece com todos os seres humanos, torna-se um indivíduo pequeno, frágil, que não consegue escapar às partidas da existência… mas ao contrário de tantos outros, Turner deixou um incrível legado histórico – legado esse que levou o realizador a querer fazer este filme.
São duas décadas e meia de quadros, de ideias, de aspirações, de paixões fulgurantes e de grandiosos aplausos, que tão facilmente desapareciam como voltavam a surgir – algo que podemos constatar, por diversas ocasiões, neste filme de cariz biográfico. Mas apesar de estar enquadrado nesse género, a narrativa e a direção do veterano Mike Leigh (presença constante de Cannes, onde arrecadou a Palma de Ouro pelo drama Segredos e Mentiras, há quase vinte anos) fazem com que nunca se caia no mais banal fio condutor cronológico, problema fundamental dos filmes “baseados em personalidades reais” mais típicos. Sem floreados e indo direto ao assunto, aproveitando os magníficos atores e uma maravilhosa fotografia, Mr. Turner apresenta-nos esta personagem sem a tornar simpática, acessível ou até, mesmo, “cinematográfica”.
E é talvez aí que está o maior fascínio do filme, ou seja, na maneira como não nos mostra nada de acutilante. Mr. Turner é um filme com uma seca, fria e estruturada auto-contemplação, que passa pelos quadros do autor e pela sua visão do mundo (e de como os dois lados se colidem, quando a realidade influencia a sua obra artística), sem querer causar grandes estímulos sensoriais. E por causa disso é que a obra está a receber opiniões tão polarizadas nos dois lados do Atlântico – porque se “reduz” a uma vida e a um estilo fechado e objetivo de mostrar essa vida em cinema.
Mas de facto, vale a pena descobrir Mr. Turner, e mais do que isso, deixar que a história nos leve para os caminhos que ela planeou. Porque é simples sem deixar de ser singular, e um belíssimo filme que trabalha muito bem as relações humanas de uma época, e um certo sentido de classe muito restrito à sociedade inglesa, pegando, ao mesmo tempo, em valores universais com os quais qualquer um de nós se consegue identificar, algo patente nas cenas em que Turner é alvo do escrutínio dos seus pares, do ódio de alguns e da adoração desmedida de outros tantos, à medida que se torna uma figura da socialite britânica e, também, uma figura que faz os temas de conversa de café dessa mesma elite.
E Timothy Spall é impecável por conseguir transmitir toda uma personalidade distinta do conformismo geral, a que está submetida a elite, que se encerra numa redoma de falso prestígio e credibilidade, como se pudesse fazer tudo o que quisesse dos artistas que dela precisam para encontrarem os seus mecenas e o tão ambicionado pontapé de saída para o reconhecimento cultural. Joseph Turner era uma figura distante e, ao mesmo tempo, próxima dessa redoma, aproveitando-se dela para os seus propósitos… e acabando por ser negativamente influenciado pela mesma – testemunhamos isto ao longo do filme, também.
Mr. Turner é um grande filme por não parecer ser um grande filme. Porque é um biopic que não é um biopic como imaginaríamos que fosse (e como o trailer dá a entender), e porque não reduz a sua figura central a uma máscara única, superficial e fácil, como a maioria dos filmes biográficos desta era moderna. Grande parte do filme vive dos silêncios e de diálogos que, à partida, alguns espectadores poderão considerar “monótonos”, “inúteis”, “pouco imaginativos”. Mr. Turner tem muito mais do que isso, e transmite muitas coisas naquilo que, aparentemente, não nos está a dizer, e que se encontram gravadas na delicadeza poética das suas imagens. Eis a grandeza deste filme.
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