Se «Dr. Strangelove» é a sátira bélica por excelência, e se «Nascido para Matar» pode ser vista como uma das melhores e mais duras críticas cinematográficas à guerra do Vietname, «Horizontes de Glória» é mais um filme ímpar de Stanley "realizador dos 7 ofícios" Kubrick, por não ser nem uma coisa nem outra. Surgiu antes dessas duas outras obras primas e foi a obra que primeiramente definiu o cineasta como um dos nomes mais sonantes do panorama cinematográfico da sua época. Sendo anti-guerra, o filme não chega ao ponto de ridicularizar todo o sistema militar e político que envolve os conflitos armados e devastadores à escala mundial, como no caso do "homem que decidiu amar a bomba", nem decide atacar ferozmente todo um sistema que visa preparar soldados para uma guerra que não conseguem entender, como no caso de «Full Metal Jacket». Menos histérico e menos violento (pelo menos fisicamente), «Horizontes de Glória» torna-se aos nossos olhos num filme de guerra contra a guerra, mas que marca a sua posição de forma mais suave, utilizando uma ímpar delicadeza narrativa e uma história onde a ambição, a reputação e os interesses das elites do exército põem em causa a vida de três soldados inocentes, mas que têm como única culpa o facto de não serem os maiores adeptos da guerra em que estão a combater, e que serão injustamente acusados de covardia perante um tribunal militar para satisfazer as necessidades de um dos grandes chefes daquela área de batalha. «Horizontes de Glória» é um filme americano, sobre o lado francês na Primeira Guerra Mundial (mais precisamente, durante o ano de 1916), e que é mais um testemunho brilhante da mente tão criativa e extraordinária de um dos maiores realizadores de sempre. Kubrick soube abordar cada assunto de várias perspetivas, e aqui encontramos uma visão mais triste e profunda do que a dos seus outros filmes "bélicos", não sendo tão gráfico ou complexo. É na simplicidade de uma situação tão banal como é a relatada no filme que encontramos o pior do Homem e o destino cruel dos fracos sobre os seus superiores, que nada querem saber daqueles que estão a controlar. Mas no meio da vulgaridade, sobressai o Coronel Dax (interpretado por Kirk Douglas - que regressaria, três anos depois, às mãos imaginativas de Kubrick com o dispendioso épico «Spartacus»), que tenta mudar a situação e salvar os três homens que parecem ter os dias contados. Dax pretende defender os soldados em julgamento, o que lhe poderá arruinar toda a sua carreira no exército, por causa do General que não quer desistir do seu desejo cego e livre de preocupações cívicas e morais. Num ambiente onde um pode prejudicar milhares (utilizando o seu poder), e acompanhado por cenas extraordinárias dentro do trágico cenário do combate armado, «Horizontes de Glória» fala da capacidade que a hierarquia do poder e do status possuem para influenciar todo um sistema e as pessoas que dele dependem. Num mundo onde "os grandes comem os pequenos" (estas palavras do Padre António Vieira nunca estiveram tão atuais), haverá espaço para marcar a diferença?
Filmado num luxuoso preto e branco e construído com uma fotografia sensacional, que dá ao filme muito do seu "charme" único, «Horizontes de Glória» pode também ser visto como um filme existencial, que nos inquieta em relação às grandes questões da Humanidade (e não ao existencialismo de Sartre, Camus e companhia). É a primeira grande obra kubrickiana, onde vemos nascerem muitos dos temas e das preocupações que o realizador voltaria a filmar nas suas obras primas posteriores tão ricas e diversificadas, aqui inseridos na temática da fita com grande inteligência e originalidade. São poucos os filmes de guerra que nos podem perturbar tanto como este, que não é dos mais longos (tem pouco mais de oitenta minutos) nem dos mais "épicos" ou cinematograficamente gigantes. E tanto pode ser falado em inglês como poderia ter sido gravado noutra língua qualquer: a qualidade humana e tão universal que «Horizontes de Glória» abrange todas as culturas e estilos de vida. Quem não quer ver a injustiça ser combatida? Existe alguma alminha cinéfila que anseia por um mundo cada vez mais demagogo e "logicamente" bizarro, onde os bons não triunfam e o mal prevalece sempre? Devemos pensar que nunca haverá espaço para a inteligência tocar nalguma mente superior, fazendo com que esta se perceba que há coisas impossivelmente impossíveis de serem concretizadas, mesmo que vão contra os interesses dessa pessoa? Dax é o exemplo do homem leal a si próprio e aos seus valores, que não hesita em agir sempre que pode em prol dos que precisam dentro da hierarquia militar. Para ele, a injustiça é mais preocupante do que a submissão aos seus superiores, e a sua atitude é admirável. Kubrick filma-o não numa perspetiva de heroicidade, e coloca-o sim numa espécie de "pequenez" junto dos grandes que, no fim de contas, não possuem nenhuma grandeza (a não ser o número de "crachás" que têm estampados nas fardas oficiais). Ninguém é enaltecido em «Horizontes de Glória». Só os valores defendidos pelas personagens e a forma como a guerra estraga as vidas daquelas pessoas. O filme questiona a existência de humanidade e humildade em tempos de conflito de uma maneira fascinante, quando a justiça não abunda nos tempos mais difíceis e onde tudo parece estar na base de cumprir cegamente um conjunto de estranhas e insensatas ordens, provenientes de estrategas de guerra que mal sabem os prejuízos do seu controlo descontrolado, e é com eles que vemos o papel do poder e o que o seu uso condiciona neste clima de tensão e de constante preocupação. Sendo um filme mais experimental de Kubrick na técnica, «Horizontes de Glória» não deixa de ser uma peça cinematográfica espetacular e, por isso, é mais uma das grandes obras do cineasta, onde a crítica ao ser humano prevalece sobre a crítica à guerra através do exemplo deste coronel idealista, que ousa enfrentar o sistema que o "criou" profissionalmente. Mais do que na guerra, era essencial que esta postura humana e verdadeira se mantivesse em todos os parâmetros da vida social.
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