Foi um coreano, Bong Joon-ho, que conseguiu trazer de volta a extinta tradição épica, popular e inteligente dos grandes clássicos blockbusters de aventura e ficção científica: Snowpiercer – Expresso do Amanhã é uma história apocalíptica e uma metáfora arrasadora para a existência humana e a hierarquização da vida em sociedade.
Snowpiercer é o comboio onde viajam todos os humanos que sobreviveram à catástrofe provocada por uma experiência falhada que queria parar o aquecimento global. Entretanto, estamos em 2031 e uma nova geração já nasceu naquele comboio, e muitos não se conseguem lembrar de como era a vida na Terra, antes da tragédia acontecer. O Snowpiercer viaja sem parar à volta do mundo, e está estruturado de forma hierárquica, dos mais pobres aos mais ricos e poderosos, controlando os fracos com um sistema violento e chocante. Mas chegou a altura de Curtis (Chris Evans) liderar uma revolta contra todo o sistema dominado com mão de ferro pelo grandioso chefe do comboio.
Dito desta forma, o simbolismo político e social de Snowpiercer – Expresso do Amanhã pode parecer simplista. Mas não é isso que conseguimos ver neste novo filme de Bong Joon-Ho, numa produção de cariz internacional (algo que se nota em alguns formalismos narrativos da história) que contou com o auxílio de Chan-wook Park (de Oldboy – Velho Amigo) que adapta para o grande ecrã a BD Le Transperceneige. É uma história apocalíptica contada com grande entusiasmo e exatidão, tendo sempre atenção ao(s) pormenor(es) de cada cena e de cada crítica, ou sátira, presente nas diferentes carruagens do transporte.
Estamos numa época em que abundam as grandes produções que aparentam possuir uma grande mensagem política por trás das suas ficções comerciais e dirigidas só para um público teenager (a saga Os Jogos da Fome é disso exemplo). Mas depois aparece Snowpiercer, que utiliza essa forte mensagem para cativar o espectador e utilizá-la para proporcionar momentos de grande e glorioso entretenimento. A estrutura hierárquica do comboio é uma metáfora, em escala mais reduzida, do sistema que regula a humanidade desde sempre, tal como a grande desigualdade de recursos que encontramos no fosso entre os mais ricos e os mais desfavorecidos.
E a adaptação pode sofrer de algumas falhas técnicas e narrativas, mas não serão elas que conseguirão destruir o espírito do filme, e o sense of wonder dramático que nos suscita – porque parece mais real do que parece, a uma primeira vista menos atenta. Pode estar aqui assinado o futuro da humanidade, sempre à procura de aumentar os escassos recursos que tem disponíveis (mas que acabam por nunca chegar às mãos de quem mais precisa)? Esta obra apocalíptica, extremamente divertida (no sentido mais emocionante e “cerebral” do termo) e entusiasmante, abre-nos mais os olhos para o mundo em que vivemos, no meio de doses carregadas e intensíssimas de ação, tensão e crueldade.
Mas Snowpiercer é também marcado por um humor insólito que pode até ser mais chocante para o espectador do que as cenas de luta e as pequenas tragédias que se vão sucedendo ao longo da jornada do grupo de Curtis para chegarem ao outro lado do comboio. E aí, a simbologia, o insólito e o lado épico do filme (tão bem estruturado com a fenomenal banda sonora) ganham outra dimensão, evidente nas fabulosas interpretações do maravilhoso elenco internacional que suporta a história (com Chris Evans e também John Hurt, Jamie Bell, Tilda Swinton, Octavia Spencer, entre outros).
A maldade pode ser extrema, e por vezes caricatural, mas nunca deixa de ser estética e visualmente impressionante, tal como a batalha para controlar a locomotiva (que será o passo final para dominar o tirano Wilford e o que resta da humanidade), que se opõe a um conformismo que está demasiadamente instalado nas sociedades contemporâneas. Porque o que interessa é o equilíbrio do sistema, custe o que custar, eliminando aqueles que a ele se opõem e congratulando os outros que se deixam levar pelo poder massivo do establishment nas suas vidas.
É uma grande aventura arriscada e provocadora como há muito não víamos (nem tão cedo voltaremos a encontrar) no cinema, atendendo à modernidade e criando novas ideias que mostram que ainda se conseguem fazer blockbusters com cabeça, tronco e membros, auxiliando o lucro e a tentativa de chegar a um mercado mais vasto (porque as cedências que Bong Joon-ho teve de fazer não destroem a sua intenção artística) com uma nova e mais fria maneira de ilustrar, através da ficção das imagens, um retrato mais real da realidade do que aquele que os nossos olhos conseguem captar.
Com uma formidável fotografia e realização, e um argumento sensacional (que contou com a ajuda de Kelly Masterson, autor do excecional canto do cisne de Sidney Lumet, Antes que o Diabo Saiba que Morreste) prova que, ao contrário do pessimismo de muitos, o potencial lucrativo de um filme não precisa de ligar diretamente à sua qualidade técnica e narrativa. Um inesquecível jogo político à escala de um comboio, representativo de toda a Humanidade – e que pinta, talvez, o cenário dramático que nos espera num futuro não muito longínquo.
Baita texto caro Rui, parabéns!