O que há de novo em «Her», que o tornou num objeto de culto nos últimos meses e que é a nova paixão de muitos cinéfilos espalhados pelo mundo? Muito pouco. Talvez a história high-tech e modernaça de Spike Jonze, sobre o amor entre um homem que está prestes a divorciar-se (Joaquin Phoenix) e o sistema operativo que adquire (com a voz de Scarlett Johansson) não seja mais do que um reflexo dos tempos modernos e da obsessão crescente que as novas tecnologias criam na nossa vida quotidiana. Mas há qualquer coisa de especial neste bizarro romance cinematográfico que o distingue. É mesmo o seu realizador, inventor das histórias mais extraordinárias da tela neste século, e vale a pena sempre citar filmes como «Inadaptado» e «Queres ser John Malkovich?». Ambos tiveram a autoria de Charlie Kaufman, um dos mais criativos contadores de histórias da nossa era, mas «Her» não saiu da pena do argumentista. Foi Jonze que trabalhou esta incrível história sentimental, dizendo-se inspirado na primeira obra de Kaufman como realizador, o grandioso e complexo «Sinédoque, Nova Iorque». E as influências são óbvias, desde o impacto da metrópole no mísero ser humano à presença da tecnologia e dos novos mundos que este mundo nos ajuda a descobrir. Encontramos outras fórmulas de outros filmes, e repetições de ideias, sensações e valores que já vimos, pelo menos uma vez, em alguma outra obra. Mas... este é um filme de Spike Jonze, volto a assinalar - e só por isso se poderá perceber que não estaremos perante uma fita a que se possa chamar vulgar. «Her» é um filme cuja qualidade ultrapassa qualquer defeito que lhe possam colocar, porque os "mas" são muito mais fortes do que as coisas negativas que lhe têm apontado. Mesmo sendo em menor número.
A história bonita e singularmente brilhante de «Her» joga com tudo aquilo que já sabemos. E é difícil que, num amor impossível como este, algum de nós não possa perceber qual é o final - mas que é afinal o Cinema? Uma experiência em que esperamos ser apenas surpreendidos por aqueles realizadores que nunca podem estar no pedestal onde se situam os Grandes (desculpando qualquer gaffe dos Mestres, por estes serem Mestres)? Ou uma Arte que vive das emoções, das coisas impressionantes transmitidas por uma simples projeção num ecrã de uma sala escura a um conjunto de espectadores? O drama distópico, criativo e imaginativo de Jonze não vai pelos caminhos mais fáceis que a narrativa principal parece prometer, e mesmo assim, cair numa história com conveniências que seja assinada por uma pessoa original do Cinema contemporâneo, será sempre muito distinto (felizmente!) de aturar as xaropadas mais habituais que nos chegam dos EUA. Afinal, as linhas gerais de «Her» são apenas uma camada superficial para toda uma conjuntura muito mais interessante e verdadeiramente tocante. Não ganha pontos apenas por retratar tão bem a melancolia que é a vida cada vez mais tecnológica do nosso dia a dia, onde a massificação de ideias, pensamentos e gostos parece ser uma constante insuperável, e em que a comunicação parece ser uma característica humana em vias de extinção, apesar de termos mais ferramentas para comunicarmos uns com os outros. «Her» surpreende por ser a tristeza da vida mundana, e das pequenas felicidades, reais e/ou artificiais, que preenchem as nossas angústias individuais. O conto de fadas dramático de Spike Jonze não é mais do que uma fachada para se poder descobrir um filme com várias camadas de compreensão e de maravilha visual e sensorial.
«Her» faz-nos rir e chorar, mas cativa mais ainda por refletir aquilo que vivemos e que está tão entranhado nas nossas existências que quase nem nos apercebemos quotidianamente da sua existência. É um filme para o Agora, e perdoem-me a franqueza, mas não quero saber se a película perderá a atualidade com o passar dos anos, e que se torne um objeto de sci-fi retro-futurista com dotes de pinga-amor. No Presente, é uma obra essencial. Não façamos já julgamentos do tempo (porque, como todos já deveriam saber, ele nunca é fácil de se prever) e centremo-nos em perceber o filme e entender o amor que muitos têm por esta singular estreia nas nossas salas. A vida nunca deixa de se centrar nos mesmos problemas e de regressar aos temas que toda a gente já quis discutir. Mas nunca é demais vermos esses temas tão bem retratados, com tanta candura, tanta doçura e tanto detalhe, como é o caso de «Her» (mesmo que, como às tantas ouvimos dizer, "The past is just a story we tell ourselves"). Spike Jonze volta a assinar mais uma grande obra, que não deve ser comparada com nada nem ser vista como algo que, nas mãos de outro realizador, seria melhor ou pior. Nunca saberemos ou poderemos dizer, com certezas, as respostas para essas hipóteses que alguns têm perdido tempo em magicar. Mas uma coisa é certa: nenhum deles faria isto como Jonze o fez, nem como Joaquin Phoenix e a sempre deslumbrante Amy Adams interpretaram, tão bem acompanhados pela espantosa banda sonora que tem toques de Arcade Fire. Para o bem ou para o mal, «Her» é um filme único, que só uma pessoa poderia fazer, não recorrendo a protótipos de reciclagem putrefacta e nada sumarenta que, por agora, estão a desgraçar Hollywood.
Obra que apela ao "carpe diem" da vida urbana e que critica as ilusões do ser humano, que acredita que a sofisticação nunca poderá ser falível (falhados somos todos nós por ainda acreditarmos que existem coisas invencíveis), «Her» opõe intelectualidade e emocionalidade, e não tenho dúvidas quando constato ter adorado esta pérola do mundo digital por me ter deixado levar (para alguns o termo correto será "manipular" - mas neste caso talvez seja demasiado mesquinho e redutor) por tudo o que Jonze e a sua história não mostram, mas que nós vemos ali, em cada frame, em cada diálogo, em cada cena. Com fantásticos valores de produção, é uma das peças mais bonitas, originais e incríveis que este ano poderemos ver nas salas do nosso país, e uma proeza para o Cinema moderno.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário