"Old age... it's the only disease, Mr. Thompson, that you don't look forward to being cured of."
Filme de decadências e traições, obra sobre Poder e declínio, película marcante da História do Cinema Americano. «Citizen Kane» não é o melhor filme dos tempos porque, felizmente, a arte cinematográfica é tão vasta e excecional que se torna difícil escolher uma grande obra que se destaque entre todas as outras grandes. Mas sem dúvida, a primeira e mais conhecida realização de Orson Welles é um dos trabalhos mais notáveis da Sétima Arte, e figura com toda a justiça no Panteão das maiores obras primas da História das obras primas do Cinema. Foi uma proeza técnica para o seu tempo (apesar da maioria das inovações serem de descoberta anterior a este projecto - no entanto, Welles aperfeiçoou-as e levou os mecanismos a mares cinéfilos nunca antes navegados), e na contemporaneidade permanece como um filme arriscado para os padrões de “consumo” cinematográfico (a câmara não é "bem comportada", filmando de ângulos pouco usuais e que foram pouco favoráveis para os padrões da época - e talvez hoje em dia sejam difíceis de compreender pelo "comum dos mortais"). «Citizen Kane» não só contribuiu para dar um novo impulso às Imagens em Movimento, como auxiliou a tornar maior e mais imperceptível a Arte da Ilusão proporcionada aos espectadores por essas imagens. Porque se o Cinema envolve o manipular o melhor possível o espectador, o filme envolve o público na teia complexa e fascinante da obscura vida de Charles Foster Kane, dos seus amigos e da falha das relações humanas, que cresce à medida que o seu Império torna proporções ainda mais gigantescas (mas se as posses de Kane aumentam, isso não corresponde à cada vez maior falência económica da sua "indústria").
Não é só a grandiosidade e o lado espalhafatoso de Kane, que indica a sua crescente ruína, que faz de «Citizen Kane» um filme tão marcante. É de notar o valor que se dá à deterioração da grande amizade que unia o protagonista e Jedediah Leland (Joseph Cotten num excelente papel), que se afastam porque Kane perdeu gradualmente os valores éticos (e uma certa Declaração de Princípios por ele escrita e assinada quando comprou o jornal «Inquirer») que o motivaram a iniciar a sua demanda pelo mundo da comunicação social e, mais tarde, por outras vertentes da vida social e urbana dos Estados Unidos da América. Ao rejeitar aquilo que acreditava e que o fez subir a ambições mais altas do que poderia imaginar, vemos os desejos de Kane alterarem-se segundo as relações de poder que estabelece, e pela contínua e mais abrangente importância e mediatismo que atinge na sociedade americana. Mas apesar de todo o poder que detém com o seu Império, Kane é um homem impotente, por nunca conseguir ter aquilo que realmente quer. Apoiando-se no colecionismo obsessivo e exacerbado de obras de arte e suas afinidades (culminando na construção da inacabada e caríssima Xanadu - cujo custo, segundo ouvimos na "newsreel" do filme, nenhum homem conseguirá descobrir), Kane tenta colmatar as faltas que tem na sua vida e que, mesmo tendo todo o dinheiro e poder de influências do mundo, nunca conseguirá compensar. Faz crescer coisas sem motivos definidos, porque assim pensa que está a usar o seu poder e a fazer aquilo para o qual ele "serve", mas nunca conseguirá ficar satisfeito. A grandeza, a sua prepotência e a sua arrogância, afinal, não passam uma máscara que esconde os seus segredos, as suas falhas, o seu lado nostálgico, e essa palavra tão misteriosa, que um jornalista tentará descobrir qual será o seu significado para a vida do decadente e frio Charlie Kane: "Rosebud"!
O problema da elevada aclamação que «Citizen Kane» ao longo das décadas é o mesmo que muitas obras primas praticamente unânimes sofrem no seu processo de intemporalidade: ao serem demasiado estudadas e analisadas, talvez os críticos e investigadores percam a noção de que este é um filme que, como qualquer outro, requer desconhecimento total do seu conteúdo. Infelizmente, muitos de nós já visionaram o filme sabendo, afinal, o que é “Rosebud” (a famosa chave para o carácter e a vida de Charles Foster Kane), mas há todo um espólio cinematográfico que, tal como as maravilhas do império megalómano de Xanadu construído pelo magnata (não esquecer também a megalomania do cineasta, que se repetiria no seu filme seguinte para a RKO, «The Magnificent Ambersons»), é um regalo para a vista e para a sensibilidade dos mais cinéfilos. E descobrir a história de bastidores do filme, e a forma como o aparente visado da trama, o real William Randolph Hearst, tentou a todo o custo que «Citizen Kane» fosse espezinhado e desprezado pelo seu país (o que envolveu algumas ameaças ao jovem criativo Orson Welles) é também outra delícia que nos proporciona outra visão sobre esta história excecional. Welles recusou, ao longo de toda a sua vida (e durante todos os anos em que foi "massacrado" com esta sua primeira obra, que é apenas uma pequena parte de uma vasta e inovadora filmografia, única no circuito americano), dizer que o seu Kane é uma cópia exata de Hearst, mas trata-se sim, de uma amálgama de histórias de vida. Porque afinal, o que vemos da decadência de Kane não é mais do que o que a experiência humana nos mostrou várias vezes noutros casos reais. Contudo, todas as histórias sobre ascensão e queda saem valorizadas pelo seu lado original, e pelo facto de que, apesar da vida parecer convencional, aquilo que tiramos dela nunca poderá encaixar-se nos parâmetros rígidos da vulgaridade. E pode ter sido, na época, um brutal fracasso de bilheteira (apesar da grande campanha publicitária e da polémica em volta de Hearst), e perdeu nos Oscars para «O Vale Era Verde» de John Ford. Mas hoje, e tal como em 1941, «Citizen Kane» é uma das obras mais fulgurantes e angustiantes sobre os pequenos lugares-comuns e as grandes surpresas da essência da humanidade.
É de louvar os atores do «Mercury Theatre», muitos a darem os primeiros passos no Cinema, mas que fornecem interpretações brilhantes de uma qualidade que vários artistas com uma carreira já estabelecida nunca conseguiriam alcançar. É de elogiar a banda sonora de Bernard Herrmann, o seu primeiro trabalho como compositor, e que aqui mostra as bases de melodias mais negras e obscuras como seriam as que ele faria para vários grandes filmes de Alfred Hitchcock, que ficam indissociáveis da música que os acompanha. Herrmann aumenta o ambiente de angústia existencial proporcionado pela decadência psicológica de Kane e de todos os que dele dependeram, crescendo o Vazio sentimental que tanto nos fascina, como nos arrepia, nos momentos mais tristes e complexos da narrativa. «Citizen Kane» recriou a alma humana destruída, nos moldes que inspirariam muitos filmes posteriores (um dos exemplos mais recentes é o percurso auto-destrutivo de Daniel Plainview, interpretado pelo Oscarizado Daniel Day-Lewis em «There Will Be Blood»), num dos exemplos mais genuínos e negros dos efeitos da prepotência humana. Quando a felicidade, afinal, reside nas pequenas coisas, nem o maior dos magnatas consegue resistir mentalmente àquilo que a sua memória insiste sempre em tocar. Quem dera a muitos fazerem uma longa-metragem de estreia tão genial como a de Orson Welles (que foi beneficiado pela total liberdade criativa oferecida pela RKO), que deve também, neste resultado final, ao trabalho de fotografia (que o próprio reconheceu, colocando o responsável ao lado do nome do realizador nos créditos finais do filme). Mesmo que já saibamos o final ou já tenhamos visto a fita mais do que uma vez (como é o meu caso), «Citizen Kane» é daqueles raros casos cinematográficos que se torna mais perturbante e revelador a cada novo visionamento, sendo um filme praticamente novo a cada visionamento. Estando ou não nos tops que elegem os melhores filmes de todos os tempos, este é sem dúvida um marco incontornável da cultura mundial.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário