Os grandes filmes do realizador Stanley Kramer têm sempre uma preocupação socio-cultural incluída na narrativa (e que a ela atribui um suporte especial), numa sociedade que, apesar de se mostrar idílica e paradisíaca, tem ainda muitos obstáculos para ultrapassar e que não ajudam a concretizar para a realidade essa dita ilusão. Em «Inherit the Wind» vimos o fanatismo religioso a combater as novas formas de pensar, que vão contra a norma estabelecida na pequena cidade do filme. No «Julgamento de Nuremberga» pudemos acompanhar um dos processos de condenação dos homens envolvidos num dos mais horríveis e trágicos crimes da História da Humanidade. E neste «Guess Who's Coming to Dinner», encontramos vários dilemas das relações humanas (e que, ao contrário do que muitos apregoam, não se resume às questões dos preconceitos raciais). O que liga também estes filmes é a coragem de Kramer, que filma histórias sobre temas controversos nas épocas em que a controvérsia é ainda de maior escala, e neste último título do cineasta, não nos podemos esquecer que ainda se sente a larga presença do racismo nos EUA, e pouco tempo depois da estreia, o líder Martin Luther King Jr (que revolucionou a sociedade americana do seu tempo, ícone da luta pelos direitos dos negros) foi assassinado, e em consequência, uma pequena piada sarcástica da fita teve de ser retirada nas exibições feitas após o homicídio. Daí, pegar nesta história de um casal que tem de aprovar o casamento da filha com um médico negro numa altura conturbada como a dos finais dos anos 60, poderia ser um risco quase "suicida" para todas as pessoas que nela estiveram envolvidas. Contudo, a película foi um sucesso (mesmo nos estados assumidamente racistas do Sul dos EUA), e talvez pelo facto de não se centrar apenas na questão da raça. Há outros temas, talvez até aprofundados com mais densidade, que não podem ser deixados de parte enquanto se visiona a obra: o dilema da mudança dos tempos e do conflito de gerações (onde os mais velhos chocam com os mais novos devido a pormenores insignificantes), a velhice dos Pais, e o confronto entre Pais e filhos, na etapa da vida dos segundos em que eles já querem voar com as suas próprias asas. Assim, o possível matrimónio do filme é apenas um pretexto para abrir horizontes mais vastos, e que fazem toda a psicologia narrativa de «Guess Who's Coming to Dinner».
É um filme que retrata as tensões entre os membros de uma família, num ambiente aparentemente bonito e reconciliador, mas que tem os seus pequenos "demónios", onde ideias pré-concebidas e preocupações parentais se conjugam tanto para o lado da ingénua filha como para o lado do noivo dela - e não estamos a falar de racismo, porque felizmente, não temos nenhuma personagem com ideias estereotipadas nesse tipo de coisas. Os estereótipos existem nas personagens e naquilo que representam, mas as convenções que "pintam" são uma chave importante para a história - e foram feitas assim propositadamente pelo cineasta, porque depois a maneira como se lidam com os temas da narrativa é feito sem nada de cliché ou de irrealista, porque se trata do caso como seria visto por uma qualquer pessoa "vulgar", e não por um conjunto de estrelas de Hollywood que tem mais importância que o resto do Mundo. Poderia ser uma peça de teatro, pela construção das cenas e da disposição do cenário e dos atores, mas tem grande poder cinematográfico graças ao trabalho de Stanley Kramer e do seu formidável argumento. Os pequenos apontamentos cómicos e familiares são deliciosos, assim como o lado estético e cultural marcadamente "sixties", mas que até tem alguns pontos em comum com a vida atual (na parte social, não na parte "kitsch"), porque os problemas nunca mudam, apenas o conteúdo em que estão "transformados". O filme é mais inteligente e não vai pelas ideias e conclusões que todos nós sabemos e esperamos encontrar, o que mostra mais um título de sucesso feito por Kramer, e que já era uma receita que fez resultar as suas obras anteriores. E este filme pode ser muito direto e incisivo nas discussões dos problemas, mas é assim porque retrata essas discussões no seio de uma família, onde os conformismos desaparecem com a situação a tornar-se cada vez mais difícil de ser resolvida.
«Guess Who's Coming to Dinner» consegue ser, no seu todo, um retrato da América dos anos 60, e que ainda não mudou muito, quarenta e seis anos depois da estreia da fita. Com brilhantes sequências de diálogos e de situações, acompanhadas pelas grandiosas performances do elenco, é ainda um drama bonito, sensível e moderno, com muito de entretenimento que não é "só" entretenimento, e que no qual Stanley Kramer foi um perito excecional. Mais do que o testemunho de um Cinema profundamente social e dado a fazer pensar e repensar o espectador sobre aquilo que está a ver, «Guess Who's Coming to Dinner» é uma prova viva da grande versatilidade do Cinema Americano e de como, no meio de tradicionalismos formais, se consegue sempre inovar graças às abordagens mais relevantes que transformam uma parte da própria Sétima Arte. Por fim, é de realçar que este foi o último filme interpretado pelo genial Spencer Tracy, que morreu dezassete dias após o final das filmagens, e a nona vez que o ator contracenou com a sua companheira de longa data, a não menos formidável Katharine Hepburn. São eles que dominam toda a conjuntura, assim como as suas duas personagens, que "roubam" o espaço ao acting dos outros atores, destacando-se unicamente, e apesar disso, o grande Sidney Poitier pelas reviravoltas que introduz na sua composição em certos momentos. Quem souber a "trama" dos bastidores atribulados da feitura da fita saberá que Tracy já estava muito debilitado nesta sua derradeira aparição, mas se se visionar a obra, esse cansaço e desgaste é pouco notável. Ele foi um artista com soberba capacidade interpretativa, e soube marcar o seu talento até ao último frame.
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