É uma reflexão cínica e sarcástica sobre a eterna relação entre a comunicação social e o sensacionalismo, onde encontramos Jake Gyllenhaal num dos papéis mais surpreendentes da sua carreira. Nightcrawler é uma das estreias da semana e, também, um dos filmes mais interessantes e intrigantes destes meses finais de 2014.
Nightcrawler é a história de um zé-ninguém que se move por um desejo de ascensão, feita por qualquer meio, via, ou intenção profissional. Devido a uma pequena coincidência do quotidiano, Lou Bloom (Gyllenhaal) encontra a solução para o desespero que povoa a sua vida miserável, ao descobrir o estranho, obscuro e competitivo mundo do jornalismo freelancer noturno, em que indivíduos andam à caça de acidentes de viação, assassínios ou desastres de qualquer outra índole, para que possam ser filmados com o objetivo de, pouco tempo depois, serem vendidos à estação televisiva que fizer a melhor oferta. Mas o que começou por ser uma pequena brincadeira torna-se num monstro de enormes proporções, tal como Bloom se vai transformando num ambicioso manipulador, sedento de poder e mediatismo nos bastidores do pequeno ecrã, utilizando o sensacionalismo das histórias que vende para subir no topo da “hierarquia”.
O filme desenrola-se num périplo em busca das imagens mais sensacionais, num retrato irónico (e até sádico, em certos momentos mais decisivos da narrativa) do lado irracional e incontrolável dos meios de comunicação social, dominados por uma cultura de violência, em que estes jornalistas em particular têm, como principal papel, o de transmitir novas doses que permitam saciar o público dessa fome diária de choque, provocada pelo drama, o horror e a tragédia mundanas. E em parte, Nightcrawler faz-nos lembrar Sidney Lumet e o seu Network e o sarcasmo inesquecível que polvilhava a sua história e a crítica maliciosa feita ao lado comercial da transmissão de notícias.
Mas as semelhanças entre este filme (primeiro trabalho de realização de Dan Gilroy) e a clássica metáfora desconcertante de Lumet ficam por aqui. Até porque Nightcrawler segue um caminho diferente, que demonstra ser ainda mais acertado para o nosso tempo – e por sinal, mais revelador da densidade dos defeitos da condição humana nestas situações de sobrevivência do mais forte, de competição sem precedentes e de conquistas desmedidas por um lugar na sociedade, e nos seus rígidos (e ao mesmo tempo, perversos) códigos de linguagem e atuação próprios. Até porque o protagonista aproveita o jogo manhoso criado pela Internet e pelas novas tecnologias, que reforçam o lado individualista da sua ascensão profissional, o que o leva a atingir, com fácil perspicácia, patamares escondidos de conhecimento daquele mundo noticioso que fazem com que consiga atingir a sua meta de uma maneira velozmente eficaz, e também, surpreendentemente cruel, fria, desprovida de valores éticos… e claro, de humanidade.
Porque a ambição de Lou é a eterna dominação do Mal sobre a banalidade do dia a dia, acompanhada pelo desejo de se ser Outro num mundo repleto de nadas e desinteresse pelo próximo. E é por isso que, enquanto encontramos neste anti herói uma certa recuperação das características das personagens de vários inesquecíveis films-noir, observamos também uma subtil construção tragicómica (e não menos clássica) do seu caráter. Eis, assim, a chave essencial para compreender o verdadeiro significado de Nightcrawler: o truque de “magia” que envolve a perceção da realidade e os oportunismos que se podem gerar à volta dela e dos seus múltiplos e (aparentemente) inesgotáveis recursos noticiosos (à falta de algo novo, o público contentar-se-á, decerto, em ouvir histórias sensacionalistas com moldes já conhecidos – até porque parece que o gosto das massas se tem revelado cada vez mais repetitivo e viciosamente cíclico).
Com uma estrutura cinematográfica simples (mas que não perde em nada a originalidade do seu conteúdo, tão bem manejado pelos atores que o interpretam – e acima de tudo, pelo magistral Jake Gyllenhaal), o filme revela-se uma entusiasmante surpresa pela forma como Dan Gilroy evitou utilizar técnicas desajustadas às intenções da trama e do aspeto visual necessário que lhe atribui um significado especial. Mas Nightcrawler assenta, principalmente, nesse protagonista que, a cada cena, se revela menos plastificado, falso e risível, uma ideia que é dada a entender pelo preâmbulo e pelo olhar meio alucinado, meio vazio de Gyllenhaal, e que rapidamente esquecemos, à medida que desmascaramos cada vez mais esta figura, protegida por um manto de inteligente ingenuidade que o ajudará a mover-se melhor no meio que tanto anseia conhecer a fundo e, talvez num futuro próximo, comandar. Mas à frente de cada vitória encontra-se sempre uma queda vertiginosa… talvez não sabemos é sempre adivinhar quais serão as dimensões, ou alvos, ou reviravoltas, que essa queda poderá originar.
Com a hipocrisia e a alienação de um sistema noticioso que, ao contrário de todas as tendências de opinião, continua a obter um enorme poder no mundo da comunicação, Nightcrawler desvenda-se, aos olhos do espectador, como um espelho dos problemas que, desde sempre, regulam e movem as sociedades. Sociedades essas em que os extremos levam a que se tomem decisões insensatas em virtude do Ter, do Poder e do Destruir tudo e todos, sem olhar a consequências – que, mesmo que sejam boas para os autores da “desgraça”, auxiliam a manter uma “ordem natural das coisas” que continuará sempre a ser desordenada e caótica. Um fenomenal exercício de dissecação da sensação de grandeza proporcionada pela pequenez humana, e acima de tudo, um filme sensacional sobre o sensacionalismo.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário