Alguns analistas, observando a sociedade americana do século XIX, enalteceram a virtude cívica desse país, julgando a existência de um vigoroso capital social que, interagindo com as instituições, as retroalimentaria positivamente produzindo o aperfeiçoamento da capacidade estatal de atender às necessidades sociais. As loas à democracia estadunidense vêm de longa data. No entanto, como evidenciado nesse filme de John Ford, a cidadania era um direito exclusivo de homens brancos. Mulheres, negros e pobres eram cidadãos de “segunda categoria”, para usar um eufemismo sociológico recorrente.
Em O Sol Brilha na Imensidão (1953), obra que se passa numa pequena cidade americana, a história gira em torno de decisões que o juiz local, Billy Priest (Charles Winninger), precisará tomar, envolvendo a defesa de um negro e uma prostituta, as quais entram em rota de colisão com as sólidas convicções morais dos munícipes, que, aliás, como em qualquer pequeno município, costumam ser tão mais sólidas e coesas quanto menor é a complexidade das relações de trabalho. Esse contexto é agravado pela proximidade do processo eleitoral para juiz, impondo um dilema político a Priest sobre fazer o que julga ético ou atender ao desejo dos eleitores, mesmo contrariando a lei, e garantir uma tranquila reeleição.
Em 1936, Fritz Lang trabalhou uma ideia semelhante. No filme Fúria, populares vão até a delegacia do município para “fazer justiça” com as próprias mãos contra um homem acusado de um crime do qual, posteriormente, restaria inocentado. O delegado local faz o máximo para evitar o linchamento e conter a massa enfurecida apesar da força policial à sua disposição ser proporcionalmente inferior. As necessidades eleitorais aqui, no entanto, foram instrumentalizadas pelo governo de modo a não intervir sobre o massacre.
Priest não titubeia e toma suas decisões sem levar em conta as exigências instintivas e irracionais nos dois casos polêmicos, mesmo compreendendo os obstáculos eleitorais que terá diante de si. Diferentemente do desfecho negativo que acontece em meio a um conflito moral em Como Era Verde Meu Vale (1943), obra premiadíssima de Ford, aqui, em O Sol Brilha na Imensidão, a sorte e a acomodação da moralidade tacanha acabam ajudando Priest a sobressair-se diante da crise e garantir sua reeleição.
Apesar do que o filme deixa transparecer, política e moral andam umbilicalmente unidas. Temos uma relação empírica com esse fenômeno particularmente nas eleições presidenciais brasileiras, quando temas como aborto e criminalização da homofobia são pinçados para fora da agenda de modo a não afrontar a sensibilidade um eleitorado majoritariamente conservador. Se em tempos normais esses temas provocam o deslocamento das preferências dos cidadãos comuns em prol de projetos alternativos de poder, a sua manipulação em épocas eleitorais pode ser decisivo para a vitória ou derrota de uma candidatura.
Aliás, no caso envolvendo o negro nesta história de John Ford, se não tivessem encontrado o culpado pelo crime que foi atribuído injustamente especialmente pela cor do rapaz, o resultado das eleições para juiz teria facilmente sido outro (o clima dos partidários do vitorioso era de imenso pessimismo), evidenciando que, apesar da narrativa otimista do diretor, na política a longas e promissoras carreiras são construídas por variáveis muito mais eficientes do que a ética, mas a capacidade de articular, pelos mais variados métodos, as maiorias necessárias para o exercício do poder.
O Sol Brilha na Imensidão é um filme que se insere numa categoria de cinema que elabora de forma reveladora os desafios da política, embora ele fale mais pelas suas entrelinhas do que pela mensagem explícita.
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