Cinema é arte transformadora. Um filme tem o poder curioso de nos alcançar e fazer com que pensemos e enxerguemos assuntos, temas e opiniões de forma nova. É difícil definir o que leva um filme a atingir o íntimo e o sentimento de um espectador. Independente do grau de cultura ou de entendimento, nós estamos expostos a radiação prodigiosa do que vemos, ouvimos e sentimos. Em “Babette Gaestebud” assistimos uma ciranda de signos e símbolos, que evoluem para nos proporcionar comoção, alegria e alívio.
Em uma noite chuvosa, Babette (Stéphane Audran) chega a desolada e austera costa da Dinamarca. Com um ar misterioso e semblante sofrido, procura pela ajuda de duas irmãs religiosas, Philippa (Bodil Kjer) e Martina (Birgitte Federspiel), filhas de um pastor soberano de sua própria denominação protestante. Portando uma carta de um velho conhecido destas, Babette escapa da Comuna de Paris, após seu filho e marido serem mortos. Sendo recomendada pelo cantor lírico que lecionou a Phillippa em sua juventude, a francesa consente em trabalhar gratuitamente como serviçal na casa das duas idosas, em troca de segurança e refúgio. Eis que após ganhar na loteria, Babette decide oferecer um verdadeiro jantar francês as irmãs que a acolheu e ao general que fora pretendente de Martina em sua mocidade.
A fita é condicionada na estória do um velho pastor que é respeitado pelo humilde vilarejo em que vive na companhia de suas duas belas filhas, que na juventude abdicaram de uma vida matrimonial para se dedicarem aos ensinamentos de seu pai. O pequeno e revelador prólogo nos apresenta os interesses amorosos das duas irmãs, que uma vez decididas em perpetuar a palavra de seu pai em detrimento de seus desejos, vivem pautadas dos rígidos padrões que escolheram, resignadas. Os dois pretendentes se revelarão ligados à presença de Babette na vida das duas senhoras.
O filme pode, deve e de fato é interpretado de distintas formas. A universalidade de emoções que o mesmo desencadeia no espectador o leva a refletir sobre aspectos e sentimentos corriqueiros em nossa vida e, por conseguinte, na do próximo. Por meio do prisma da religião e da doutrina maniqueísta que estamos impostos desde nossa infância, observamos a resistência e a negação das pessoas ao “presente” oferecido de bom grado por aquela que se revela cozinheira. O jantar ofertado por Babette é alvo de intolerância e julgamento daqueles que por catorze anos conviveram com a forasteira. Versando sobre o binômio abnegação/prazer, o diretor nos confronta com um espelho de nossa condição, não sendo difícil nos reconhecermos nas pequenas atitudes e comportamento dos convivas.
E religião de fato é um dos principais pilares. O jantar de Babette é nitidamente uma alusão a Última Ceia. Aqueles que partilham o jantar formam doze pessoas, que conforme a Bíblia pauta no evangelho de João, no capítulo seis em seus vários versículos, comungam a carne e o sangue de Cristo. A eucaristia proporcionada por Babette de certa forma instaura a remissão dos pecados e a anulação dos sentimentos de rancor e ressentimentos daqueles que cearam. E o instrumento que denota a regeneração são os pratos servidos no mágico jantar. O paladar é aguçado com pratos de sopa de tartaruga, blinis demidoff, codornas recheadas com trufa negra, Vueve Clicquot brut, frutas tropicais frescas e vinho Clos Vougeout da mais fina safra.
Babette oferece um banquete francês digno de nobreza para aquelas pessoas simples, como sinal de seu melhor, não soando em nenhum momento como soberba ou exaltação da gula. Como a personagem alega em certa altura: “Eu sou uma artista. Artistas nunca são pobres”, logo, a sua expressão artística se mostra arrebatadora ao se revelar uma chef outrora requisitada na Paris do século XIX. Stéphane Audran, musa absoluta do catedrático Claude Chabrol, exerce uma bonita atuação, provocando reminiscências de filmes como “Les Biches”, “La Rupture”, “Le Boucher” e “Le Charme discret de la bourgeoisie”. Magníficas lembranças.
A direção de arte surpreende seja pela configuração do vilarejo ou pela cena chave da festa. A arredia locação na costa da Dinamarca só auxilia a contar a bela passagem, e até mesmo a narração em off, funciona sem se mostrar pueril ou desnecessária. Talvez o ponto deixado a desejar seja a ausência de uma trilha sonora presente, o que apenas elevaria toda a qualidade da obra, sabiamente enxuta. A categoria da película não foi esquecida pela comunidade internacional de cinema, figurando nas competições de 1988 em Cannes, no BAFTA, no César, no Globo de Ouro e laureado com o Oscar de melhor filme estrangeiro daquele ano. “Babette Gaestebud” não lança mão de moralismos ou de ser piegas, desenhando-se como uma joia delicada e especial. Terna.
Texto dedicado ao estimado amigo Gil.
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