Dirigido por Bruno Dumont, "Mistério na Costa Chanel" consiste em uma experiência cinematográfica fora do lugar comum, ambientada no começo do século XX. Após o sumiço em série de turistas endinheirados, uma dupla de detetives é direcionada a uma região costeira no norte da França para investigar tal mistério. Lá encontram pescadores locais fechados e uma família burguesa excêntrica - basta notar que sua casa é construída numa arquitetura egípcia. Paralelamente a essa investigação, a chegada de Aude (Juliette Binoche) e seu filho Billie, ambos membros da abastada família, provocará mudanças na localidade, envolvendo inclusive Ma Loute, filho de um dos pescadores.
Bruno Dumont escolheu utilizar neste seu novo filme uma linguagem bastante curiosa e desafiadora. Para desferir suas críticas ao eterno tema do conflito de classes, faz uso de um tom cômico-sarcástico exageradíssimo. Os risos são o último dos objetivos do diretor ao decidir-se por esta forma de narração. Maior ainda do que o humor é o poder dessa linguagem em ridicularizar comportamentos e convenções sociais. Isso está sinalizado em diversos momentos nos quais as "piadas" são completamente destruídas, ora pela repetição, ora pelas distensões temporais.
A burguesia aristocrática não poderia ser retratada de forma mais espalhafatosa. Exuberantes trajes, gestual zombeteiro e, o que é particularmente potente devido à alta qualidade do elenco, cacoetes repletos de escárnio: as risadas de Aude Van Peteghem (Juliette Binoche, exemplar como sempre) e os gestos de mão e a corcunda de André Van Peteghem (Fabrice Luchini, em interpretação inspirada) são marcantes durante toda a história. Suas vidas são vazias em sentido, e suas existências parecem se justificar apenas em observar os pitorescos habitantes locais, a paisagem intocada e em dar festas e jantares.
Já os pescadores da vila são retratados, seguindo o "barroquismo" escolhido pelo diretor, de forma crua. Eles são os encarregados de transportar os ricos turistas e de servir suas refeições. Naturalmente, tentam sempre que possível ganhar algo em cima dos burgueses. Poderiam praticar preços abusivos. Poderiam praticar pequenos furtos. Essas duas alternativas, no entanto, são pouco para o estilo do filme. É extremamente coeso que tenha sido feita uma opção mais inusitada. No caso, a população local extrai vantagens dos turistas endinheirados os canibalizando, uma metáfora irretocável.
Entretanto nem tudo funciona tão bem em "Mistério na Costa Chanel". Há muitas pontas soltas e situações inexplicáveis no roteiro. Fica claro que a abordagem do filme não é surrealista (na qual a inexplicabilidade dos fatos é elemento essencial), já que é possível notar uma lógica interna cuidadosamente montada - de forma geral, os acontecimentos seguem todos a essa lógica. As exceções são, por exemplo, os elementos de realismo fantástico inseridos no fim do filme (os vôos), os quais em nada acrescentam à história.
Outra situação central que a trama não consegue dar tratamento adequado é a figura do personagem Billie, filho de Aude Van Peteghem. Essa é a maior falha do filme, e ela ganha proporções gigantescas porque o envolvimento de Billie com o Ma Loute é o ponto de virada dramática da obra. Fica claro que a relação dos pescadores com os burgueses da família Peteghem muda drasticamente após esse envolvimento terminar. A espécie de pacto de "não-agressão" rui, e temos na parte final da película a abasta família sendo tratada pelos locais da mesma forma que são tratados os turistas. Billie é um personagem misterioso e pouco presente durante a história. A sua caracterização é rasa e a sua confusão de gênero é sempre marcada. Embora apresente essa característica, ela em nada acrescenta à trama e muito menos ganha o tratamento de algo importante. Sua existência per se, descolada de qualquer objetivo, seja crítico ou dramático, não se sustenta, compondo um exagero não artístico, mas vicioso.
Também me parece insatisfatória a construção dos personagens Machin e, principalmente, Malfoy. Eles são a dupla de detetives que investiga o sumiço dos turistas. Eles, uma espécie de "o gordo e o magro" (clássico de humor pastelão dos EUA), parecem presentes apenas para acrescentar mais doses de comicidade extravagante. E nesse sentido o personagem de Machin até funciona e respeita a padrões comportamentais. Malfoy, em contrapartida, não foi bem construído, e suas participações na história são poucas e insignificantes.
Em suma, "Mistério na Costa Chanel" é um filme narrado de forma bastante original e ousada, contando com um elenco estrelado e inspirado. As escolhas feitas pela película são difíceis e desafiadoras, portanto não assusta que muitos elementos acabam por não funcionar plenamente. Isso não tira a validade da experimentação de linguagem feita pelo diretor Bruno Dumont. Mesmo com pontas soltas, a história envolve e certamente rende muitas conversas e reflexões, não sendo, portanto, nem um pouco ignorável.
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