Snàporaz (Marcello Mastroianni) é um homem de meia idade que, ao fazer uma viagem de trem, acaba por mergulhar num universo onírico no qual a discussão do conceito masculino acerca do feminino irá reinar absoluta. Nesse que é o último filme de Federico Fellini, vemos novamente Marcello Mastroianni como a figura do alter ego do diretor, além de uma série de outros elementos comuns da filmografia felliniana. O humor característico do mestre italiano já aparece nos créditos iniciais, com uma voz de mulher dizendo de maneira risonha: “Ainda o Marcello?”. O desenvolvimento da trilha sonora de Luis Bacalov imprime desde esse início da película o tom simpático e fantasioso sobre o qual a narrativa será construída.
Ao acordar em sua cabine do trem, Snàporaz vê em sua frente uma mulher capaz de atraí-lo e fasciná-lo após o primeiro olhar por ele desferido. “Superbumbum”. Como consequência, foi natural que ele a seguisse da cabine para o banheiro, e lá mesmo tentasse a seduzir. A chegada do trem na estação logo interrompeu tal momento, e a figura feminina desce do vagão caminhando em direção a uma mata, deixando o cinquentão sozinho com seus desejos libidinosos. Atordoado, ele a segue floresta adentro, e acaba por chegar no Grand Hotel Miramare, sede de um congresso feminista. Se o trem representa o elo entre a realidade e os devaneios da mente de Snàporaz, o seu adentrar no saguão do hotel sinaliza a total imersão do personagem num mundo fantástico.
A cena no lobby é típica de Fellini, sendo constituída de um verdadeiro mise-en-scène reforçado pela apurada técnica de profundidade de campo do diretor. Um detalhe interessante nesse ponto é que há no saguão pôsteres de “A Dança”, de Henri Matisse. A pintura fauvista apresenta pinceladas vigorosas, falta de nuances e uso estridente e não naturalista das cores. Se transpusermos essas características para a arte de Fellini, será fácil perceber o quão interessante foi a sua designação de seu filme como uma obra quase fauvista: as “pinceladas vigorosas” seriam a tempestade de informações, a “falta de nuances” seria a velocidade com que os elementos aparecem e o “uso estridente e não naturalista das cores”, a capacidade inventiva surpreendente e exagerada do diretor.
Snàporaz circula pelo interior do hotel e a priori se depara com feministas estereotipadas – radicalíssimas (“Matrimônio, manicômio!”), agressivas e lésbicas. Elas defendem a autossuficiência feminina e o repúdio à sociedade patriarcal (preste atenção na mulher que se disse inspirada na história da branca de neve e os sete anões). Em cada aposento, o personagem se depara com distintos eventos da causa feminina. Alguns chocantes, outros hilários. Mas quando ele finalmente escapa do hotel, outros tipos de mulher aparecem – a figura da “tarada”, as jovens rebeldes e drogadas. Até esse ponto do filme a audiência feminina poderá suspeitar que o cineasta possui uma visão extremamente machista em relação às mulheres, e em nossos tempos de debates ideológicos inflamados, pode provocar sentimento de ojeriza em parcela do público, sobretudo os que não toleram o poder do humor e do sarcasmo misturado a causas inquestionavelmente importante, mas colocadas numa posição intocável como se não fossem passíveis de críticas.
Com relação ao resto do filme, não vale a pena se aprofundar em sua análise a fim de preservar o seu efeito surpresa intrínseco. Apenas ressaltarei três dentre outros elementos merecedores de maior atenção: 1) a mulher como mãe está sempre numa espécie de altar ou patamar superior; 2) as memórias de amores passados ganham homenagem nas duas melhores cenas do filme, a da sala de quadros e a do tobogã iluminado; 3) a figura platônica da mulher ideal, embora aproximada em certa cena, tem caráter inatingível (reforçado por tiros).
Cidade das Mulheres é um filme precioso sobre a figura do feminino e seus mistérios e sua magia na mente masculina. Ele discute eficientemente questões como o machismo e a subordinação dos sexos, o papel da mãe para o homem, o fascínio à figura feminina, o amor ideal, a crise da meia idade, entre outras. É como uma visão masculina do feminino, com todas as distorções inerentes, entretanto um produto artístico extremamente fascinante dentro desse recorte. Como muitos outros filmes de Fellini, este é um espetáculo onírico com luxuriantes cenários, capazes de hipnotizar a qualquer um de maneira inexplicável. Semelhante a uma fábula recheada de críticas, questionamentos e bom-humor nunca ausente. A lição de moral fica por conta do espectador.
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