Diretor de A Primavera de uma Solteirona e O Destino de Posseidon morreu no dia 18 de junho.
Ronald Neame nasceu em Londres, em 23 de abril de 1911. Seus pais, Elwin Neame e Ivy Close, eram artistas respeitados do cinema mudo. Ele, um fotógrafo que se tornou cineasta. Ela, uma atriz. Ambos se conheceram após Yvy ganhar um concurso de beleza, que era fotografado por Elwin. A morte de Elwin num acidente de motocicleta em 1923, obrigou Neame a largar os estudos e a começar a trabalhar logo cedo. Aos 15 anos, foi office-boy. Aos 16 anos, ajudado pela influência da mãe, conseguiu um emprego de mensageiro nos famosos estúdios Elstree. Mas não demorou muito para que ele passasse a ter seus primeiros contatos com a produção cinematográfica. A primeira delas veio em 1929, quando exerceu a função de assistente do diretor de fotografia do suspense Chantagem e Confissão, de Alfred Hitchcock, o primeiro filme britânico sonoro. Seu primeiro trabalho solo nessa condição foi em 1933, na comédia musical Happy.
Neame passou a década de 1930 adquirindo experiência em filme britânicos de baixo orçamento. Seu ponto de virada ocorreu em 1941, quando assinou a direção de fotografia de Major Barbara, elogiada adaptação da peça de Bernard Shaw (feita pelo próprio), e dirigida por Gabriel Pascal. Em 1942, Neame exerceu a mesma função em E Um Dos Nossos Aviões Não Regressou, épico de guerra dirigido pela dupla Michael Powell e Emeric Pressburger. Mesmo na condição de diretor de fotografia, Neame foi indicado ao Oscar de Melhor Efeitos Especiais.
Por volta dessa época, Neame começou uma produtiva parceria com o diretor David Lean (que fora montador dos dois filmes anteriores). A primeira delas resultou no drama de guerra Nosso Barco, Nossa Alma, lançado em 1942, em que Neame foi o diretor de fotografia. O sucesso do filme fez com que Neame, Lean e o produtor Havelock-Allan criassem a companhia Cineguild. Num espaço de dois anos, a produtora realizou três adaptações de textos de Noel Coward, todas elas dirigidas por David Lean: This Happy Breed (1943), Uma Mulher do Outro Mundo (1945) e Desencanto (1945). Nos dois primeiros, como diretor de fotografia, Neame deu um tratamento especial ao technicolor. No último, sua participação no roteiro lhe rendeu sua segunda indicação ao Oscar.
Em 1946, Neame e Lean decidiram provar que seu mundo não se limitava a textos de Noel Coward. Foi ali que resolveram partir para duas ambiciosas adaptações de Charles Dickens: a primeira delas, Grandes Esperanças, foi lançada em 1946, e lhe rendeu sua terceira – e última – indicação ao Oscar; a segunda, Oliver Twist, estreou em 1948. Entre essas duas produções, em 1947, e ainda sob o selo da Cineguild, Neame estreou na direção com o thriller de baixo orçamento Take My Life, que não teve muita repercussão.
Apesar do sucesso de Grandes Esperanças e Oliver Twist, a parceria de Ronald Neame e David Lean se encerrou em 1949, após um desentendimento entre ambos durante as filmagens de A História de Uma Mulher. Neame, que seria o diretor do projeto, foi substituído na Hora H por Lean. Apesar da discussão, Neame aparece nos créditos como um dos produtores.
Jogado para escanteio pela seus ex-sócios, restou a Neame assumir a carreira de cineasta de uma vez por todas. Para tanto, encontrou no milionário britânico J. Arthur Rank, a fonte de financiamento de que precisava. Em 1950, ainda na Inglaterra, lançou A Salamandra de Ouro, adaptação convencional de um romance de Victor Canning, cuja história era parcialmente ambientada na Tunísia. No elenco, podia-se ver uma Anouk Aimeé na flor dos seus 17 anos. Em seguida, em 1952, Neame fez a comédia Às Voltas com Três Mulheres, seu primeiro sucesso comercial. O roteiro era baseado no romance de Arnold Bennett, e marcaria seu primeiro trabalho com o ator Alec Guinness. Em 1954, ainda com o dinheiro de Rank, Neame dirigiu Loucuras de um Milionário, adaptação da história de Mark Twain, e na qual Gregory Peck interpretava um homem que percebe ser incapaz de gastar sua fortuna. Em 1956, o diretor optou por uma mudança de gênero, e lançou O Homem que Nunca Existiu, eficiente filme de espionagem com Clifton Webb no papel principal. No ano seguinte, Neame dirigiu O Sétimo Pecado, seu primeiro trabalho fora da Inglaterra. A experiência não foi das melhores, e a MGM, estúdio que bancava a produção, o substituiu por Vincente Minnelli. Ainda em 1957 e provando que se sentia mais à vontade em sua terra natal, lançou Clamor de Violência, drama baseado no romance de James Ramsey Ullman, e que recebeu quatro indicações ao BATFA.
Ao final de 1957, sentindo-se preso artisticamente, Neame resolveu se desligar do produtor Rank. De fato, nos anos que seguiram à sua declaração de independência, Neame lançou aqueles que são considerados por muitos como seus dois melhores filmes: o primeiro deles, Maluco Genial, lançado em 1958, captava bem espírito iconoclasta do romance de Joyce Carey, no qual se baseava. Além de desempenhar o papel principal do artista Gulley Jimson, Alec Guinness foi o autor do roteiro, pelo qual recebeu uma indicação ao Oscar. Já o segundo, Glória Sem Mácula, de 1960, era a adaptação do romance de James Kennaway, que abordava a rivalidade de dois militares escoceses. Na linha de frente do elenco, Alec Guinness e John Mills disputavam os holofotes. Ambos foram indicados ao BAFTA, assim como o filme e o diretor Neame. Tempos depois, o próprio Neame confessou que Glória Sem Mácula era seu trabalho que mais o orgulhava.
Ao longo dos anos 60, Ronald Neame dirigiu praticamente um filme por ano. Nenhum deles, no entanto, conseguiu arrebatar público ou crítica. Em 1961, fez o thriller Fugitivos do Zahrain, com Yul Brinner. Em 1963, dirigiu Na Glória, a Amargura, o último trabalho de Judy Garland no cinema e uma espécie de paródia da vida da artista. Em 1964, lançou Corações Feridos, que chegou a ser indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Drama. Em 1965, realizou Mister Moses, com Robert Mitchum no papel principal. Em 1966, dirigiu dois filmes: o pouco visto Passaporte para o Perigo, com James Garner e Melina Mercouri, e Como Possuir Lissu, comédia de relativo êxito de bilheteria e que foi nomeada ao Globo de Ouro de Melhor Filme. Neame fechou a década de 1960 com aquele que talvez seja seu filme mais conhecido do período: A Primavera de uma Solteirona. Espécie de precursor de obras contemporâneas como Sociedade dos Poetas Mortos e O Sorriso de Mona Lisa, a fita era baseada numa peça de Jay Presson Allen, que por sua vez era tirada de uma romance de Muriel Spark. Mesmo com aquele jeitão solene do cinema britânico dos anos 60, o filme agradou a muita gente, inclusive a Academia, que premiou Maggie Smith, que interpretava a professora Jean Brodie, com o Oscar.
Nos anos 70, Ronald Neame passou a dirigir filmes de maior orçamento, acertando em alguns, errando em tantos outros. Em 1970, lançou Adorável Avarento, opulenta – e meio pesadona – versão musical do clássico conto de Charles Dickens. O longa foi indicada a Oscar técnicos e rendeu a Albert Finney o Globo de Ouro de Melhor Ator. Foi seu último filme realizado na Inglaterra.
Se Adorável Avarento não cumpriu as expectativas que o rodeavam, Neame caiu nas graças do público e dos estúdios com O Destino do Poseidon, lançado nos cinemas americanos em 1972. Quando Neame foi chamado pelos executivos da 20th Century Fox, o projeto estava saindo do controle e prestes a ser abortado. Ele sabia que o roteiro escrito pela dupla Stirling Silliphant e Wendell Mayes (baseado no romance de Paul Gallico), era um mar de clichês e que o elenco não conseguia acreditar nos diálogos muito menos nas motivações daqueles personagens. Mesmo assim Neame foi hábil o suficiente para colocar ordem na casa e realizar uma das obras mais rentáveis daquele ano.
Numa época em que o desenvolvimento tecnológico dos efeitos especiais ainda engatinhava, o impacto da obra foi tão grande que um novo sub-gênero estava criado: os filmes-catástrofe. É possível dizer que, sem O Destino do Poseidon, filmes como Inferno na Torre e Terremoto, lançados apenas dois anos depois, sequer sairiam do papel. O público lotou as salas para ver a famosa cena da onda gigante que virava o navio do avesso e fazia com que um grupo de dez passageiros caminhasse em direção ao seu casco, em busca de socorro. Gene Hackman, um dos nomes mais cobiçados da época (afinal, ele acabara de receber o Oscar por Operação França), encabeçava o elenco na pele do Reverendo Frank Scott. Entre os personagens secundários, a atriz Shelley Winters se sobressaia no papel da gordinha Belle Rosen. Winters foi responsável por uma das nove indicações que o filme recebeu. O Destino do Poseidon fez tanto dinheiro que, aos 61 anos, mais da metade deles vivido dentro da indústria do cinema, Neame finalmente podia se considerar um homem milionário.
Em certo sentido, a carreira de Ronald Name se encerrou aí. Talvez influenciado pela independência financeira que acabara de conquistar, o fato é que de 1972 até sua morte, em 2010, ele dirigiu apenas mais quatro filmes, muitos deles bem abaixo do seu padrão de qualidade. Em 1974, na onda do sucesso de O Dia do Chacal, que Fred Zinnemann adaptara do romance de Frederick Forsyth um ano antes, Neame dirigiu O Dossiê de Odessa, também baseado em outro livro do mesmo autor. O elenco continha nomes de peso como Jon Voight, Maximilian Schell e sua irmã, Maria Schell. O filme foi relativamente bem de bilheteria mas era descartável demais para ser levado a sério. Após um hiato de cinco anos, Neame voltou com a ficção-cientifica Meteoro. Apesar de contar com atores do porte de Sean Connery, Natalie Wood, Karlm Malden e Trevor Howard, o fracasso foi tão grande, que o diretor tentou, sem sucesso, retirar seu nome dos créditos. Em 1980, Neame conseguiu recuperar parte de seu prestigio com a comédia O Espião Trapalhão, em que Walter Matthau interpretava um agente da CIA que, antes de se aposentar, resolvia revelar em suas memórias todos os segredos de Estado. Por esse filme, Walter Matthau foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Ator. A parceria com Matthau agradou e ambos voltaram a trabalhar juntos no ano seguinte na comédia dramática Primeira Segunda de Outubro. O filme rendeu nova indicação a Matthau ao Globo de Ouro, dessa vez ao lado de sua companheiro de elenco, Jill Clayburgh. Após um novo intervalo de cinco anos, Neame dirigiu Corpo Estranho, uma comédia sobre um motorista de ônibus indiano que se passa por médico. Foi seu último filme.
A longevidade de Ronald Neame faz com que seu nome seja confundido com a própria história do cinema. No entanto, apesar desse contato muito próximo com a sétima arte, ele não será lembrado como um diretor inovador ou visionário. Mas justiça seja feita, essa talvez nem fosse sua intenção. Neame foi um dos poucos diretores de fotografia que conseguiu desenvolver atrás das câmeras uma carrera segura e constante. Ele se via, antes de tudo, como um técnico. Acreditava que a história vinha sempre em primeiro lugar e que quanto menos o diretor atrapalhasse seu andamento, melhor. Isso permitiu a ele transitar por diversos gêneros sem grandes problemas, moldando seu estilo ao do material que caia em suas mãos. Como muitos diretores britânicos da sua geração – vide os casos de Anthony Asquith, Alexander Mackendrick, Carol Reed, Lewis Gilbert, Ralph Thomas, Bryan Forbes, J. Lee Thompson, Peter Greenvile e Basil Dearden – optou por migrar para os Estados Unidos, em busca de trabalhos mais lucrativos, mesmo sabendo que de menor qualidade. Ronald Neame pode não ter sido um dos grandes. Mas sua carreira cinematográfica, seja na condição de diretor de fotografia, roteirista ou cineasta, o credencia como um dos profissionais mais confiáveis do cinema no Século XX.