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Sobre Dawson's Creek

Bem-vindos à Capeside!

É madrugada na cidade portuária de Capeside e o casal de melhores amigos Dawson Leery e Joey Potter está assistindo mais uma vez à fita de E.T., clássico de Steven Spielberg, no quarto do rapaz. Está tarde e Dawson convida Joey para dormir lá, como sempre faz quando perdem a noção do tempo, mas dessa vez a garota recusa a oferta. Eles não são mais crianças, argumenta ela, e já não tem cabimento dois adolescentes do sexo oposto dividindo a cama. Ele se surpreende com a recusa – a amizade dos dois é forte demais e especial demais para esbarrar em preceitos sociais tão bobos. Dawson se nega a encarar que eles estão crescendo, enquanto Joey, secretamente apaixonada por ele, espera ser notada como mulher e não mais como amiga. No fim das contas, ela é convencida a ficar, mas alguma coisa está mudada. De repente, e pela primeira vez na vida, Dawson e Joey se estranham como dois completos desconhecidos. 

A partir dessa delicada abertura, somos inseridos no universo de Dawson’s Creek (1998-2003), sucesso adolescente de Kevin Williamson que colocou Katie Holmes, Michelle Williams, Joshua Jackson e James Van Der Beek no mapa. Simples, singela e econômica, a cena já desenha toda a estrutura que veio a ser construída com o passar dos capítulos da série e o principal conflito de toda a história: o choque entre a visão de mundo sonhadora/escapista de Dawson contra a percepção realista/prática de Joey. Ele é o aspirante a cineasta, filho único de um casal de classe média que o ama e apoia, que cresceu assistindo os filmes de Steven Spielberg e que por conta disso alimenta esperanças infantis e fantasiosas para seu futuro. Ela é pobre e carente, perdeu a mãe ainda criança, tem um pai preso por tráfico de drogas, vive sozinha com a irmã e o sobrinho e só deseja sair daquela cidadezinha onde é julgada e menosprezada por todos. Os dois são o completo oposto um do outro e ao mesmo tempo são almas gêmeas desde crianças, mas agora com a chegada do colegial e as complicações do início da vida adulta, esse vínculo quase espiritual ameaça se quebrar. 

Paralelo a esse conflito central se encontram os dois personagens que irão contrapesar a relação de Dawson e Joey: Pacey Witter e Jen Lindley. Pacey, a princípio, é o melhor amigo de praxe em qualquer série adolescente, colocado como alívio cômico e adolescente em polvorosa que só quer saber de sexo, mas que depois descobrimos sofrer com a rejeição da família, que o considera um desgosto. Com o passar do tempo, Pacey ganhará um espaço cada vez maior dentro na história, principalmente ao se apaixonar por Joey e colocar em risco a sintonia errante do romance central entre ela e Dawson. Jen, por sua vez, é a garota nova da cidade, linda, loura, experiente, misteriosa, que de cara encanta o coração do vizinho Dawson e desperta a fúria ciumenta de Joey. Talvez a mais complexa do quarteto, Jen é uma personagem extremamente funcional e essencial dentro da engrenagem de Dawson’s Creek, visto ser inserida como elemento de caos que bagunça a ordem da relação entre Dawson, Joey e Pacey e lhes dá a ciência de que tudo está mudando. Se pularmos lá para o fim da série, será a mesma Jen a única capaz de reunir todos novamente para a conclusão da história, o que nos permite enxerga-la como uma espécie de corpo angelical que desencadeia e por fim conclui os dramas de toda a série. 

Como todo bom coming of age americano, Dawson’s Creek tratou dos dramas adolescentes de uma forma muito madura e pé no chão, gerando identificação por parte do público, que não teve sua inteligência subestimada, como geralmente acontece em produções voltadas a espectadores dessa faixa-etária. Estão ali os temas mais típicos, como o conflito de geração entre pais e filhos, a dificuldade no processo de crescimento e amadurecimento, a descoberta do primeiro amor, as primeiras desilusões, a insegurança com o futuro, a homossexualidade (tratada no núcleo de Jack, personagem que aparece a partir da segunda temporada e se torna o melhor amigo de Jen), e a dificuldade de achar seu lugar no mundo. Afinal, é o que todos procuram, cada um à sua maneira: um lugar no mundo. No entanto, enquanto Joey, Pacey, Jen e Jack trilham um caminho calcado nas trágicas experiências que vivem, Dawson, o personagem central pelo qual Williamson filtra todo o olhar do espectador, enxerga tudo cor-de-rosa, e daí temos um protagonista fora de sintonia com o resto dos personagens, e por isso talvez tenha sido ele o mais incompreendido e rejeitado pelo próprio público. 

Ao mesmo tempo, essa questão mantém o interesse e valor do personagem até o fim da série, mesmo quando os conflitos mais interessantes se deslocam para os dramas do resto da turma. A princípio, Dawson carece de um drama, possui a vida perfeita e pacata demais, e como um cineasta em ascensão, sente falta de conflitos próprios que o inspirem a filmar, sendo obrigado a buscar ideias na vida de seus amigos. Mas quando surgem os primeiros reveses, as primeiras desilusões, as primeiras rejeições, e as primeiras pancadas da vida, ele é imaturo e inapto para enfrentar isso, justamente por não estar acostumado a lidar com a vida real em seu mundo particular de ilusões. Novamente surge Joey compensando a ingenuidade e imaturidade de Dawson, como uma personagem amargurada pelos traumas de infância e acostumada a sempre esperar o pior. Um terá de aprender a colocar os pés no chão e o outro a acreditar mais nos próprios sonhos, e um precisa do ponto do apoio do outro para isso. Nesse equilíbrio entre as almas gêmeas se encontra a beleza maior de Dawson’s Creek e a força que mantém a série irrepreensível até o fim de sua quarta temporada, em que Joey protagoniza a mais bela de todas as falas. 

A partir da quinta temporada a consistência e cadência tão belamente construídas até então perdem muito de sua força, quando os personagens se separam e deixam Capeside para enfrentar de vez a vida adulta. Digamos que é o momento em que tudo deixa de ser Dawson e passa a ser um pouco mais Joey. Embora menos inspiradas, essas duas últimas temporadas trabalham bem o amadurecimento de cada personagem e solidificam a passagem para o grande desfecho, em que Joey deverá decidir entre Dawson e Pacey, enquanto Jen se descobre com uma doença terminal. O grande pecado de toda a produção nesse meio tempo é a exploração incessante da personagem de Joey, que na verdade sempre foi a verdadeira protagonista da série, até o desgaste completo de seu núcleo, enquanto os demais são relegados à condição coadjuvantes, especialmente Jack e Jen. Sendo Michelle William a atriz mais talentosa do elenco e sua personagem a mais interessante e cheia de possibilidades, é muito frustrante vê-la subaproveitada e parcialmente esquecida para reconquistar de novo o espaço merecido somente no último capítulo. 

Dawson’s Creek foi baseado na vida do próprio Kevin Williamson, o famoso roteirista da cinessérie Pânico, dirigida por Wes Craven. Cinéfilo fissurado por filmes de terror, deixou que sua bagagem com o cinema servisse de inspiração para a série, por isso tantas referências, passando por clássicos desde O Clube dos Cinco, O Monstro do Pântano, Mortalmente Perigosa, E.T., Verão de 42, A Última Sessão de Cinema, American Graffiti, até os sucessos jovens da época, como A Bruxa de Blair e a própria série Pânico. Há também muita referência literária, musical e televisiva, de William Shakespeare a Louisa May Alcott, de The Pretenders a Alanis Morissette, de Além da Imaginação a Barrados no Baile. 

Em dado momento da série, Dawson questiona Joey, no meio de um jogo particular dos dois de perguntas e respostas rápidas, qual foi o momento da vida dela em que tudo mudou. Ela responde e faz a mesma pergunta de volta, e talvez nessa passagem fique clara a verdadeira essência de Dawson’s Creek: a hora da mudança, aquele momento às vezes aparentemente corriqueiro ou insignificante em que sentimos um clique e sabemos de alguma forma que nada será mais como antes. Todos, cedo ou tarde, passam por isso, como Dawson e Joey naquela noite estranha em que a moça se recusa a passar a noite na casa dele. Acompanhar o que rola daí em diante é como voltar ao próprio passado, ao momento mágico em que, de repente, a gente percebe que cresceu.

Comentários (1)

Davi de Almeida Rezende | terça-feira, 28 de Fevereiro de 2017 - 00:31

Foi a única série norte-americana que marcou minha vida e assisti do início ao fim.

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