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Feito na América

AVISO: Contém spoilers.

David Chase criou um happening. Entre 1999 e 2007, Famíalia Sopranos angariou um culto cada vez maior ao seu redor, ao desmistificar a figura do gângster ao elencar como protagonistas Tony Soprano, líder da máfia italiana de Nova  Jérsei, sua família e seus companheiros de vida criminosa.  Já tendo experiência na televisão com seriados como Alfred Hitchcock Presents, Kolchack e os Demônios da Noite e Arquivo Confidencial, Chase inicialmente imaginou o enredo inicial – um mafioso com família problemática que passa a ter de tratar de seus ataques de pânico – como um filme, o episódio piloto requisitado pela HBO em 1997 em breve criaria um universo que se estenderia ao longo de 86 episódios.

Esses oitenta e seis episódios mudou nossa percepção sobre a máfia – agora eles eram indivíduos com uma vida rotineira e entediada, apesar da violência que praticam, e sujeitos a ter desejos, sonhos, hobbies e passível de sofrerem de doenças físicas e condições psicológicas – e também mudou a nossa forma de ver televisão, com a sua estrutura aberta, as ações de seus protagonistas nem sempre explicadas, a valorização da narrativa visual, a moralidade ambígua e cinzenta da série.

Após Twin Peaks, que ainda valorizava a atmosfera melodramática de soap opera para mostrar o lado “positivo” da misteriosa cidade, Sopranos seria uma das pioneiras da emissora HBO a criar o seriado de televisão contemporâneo, com características de teledramaturgia, de construção cinematográfica e os temas e histórias frequentemente ousados. O público torcia, ria e sentia medo e raiva com a longa galeria  de carismáticos personagens – da psicóloga séria e profissional Jeniffer Melfi ao ambicioso Corrado “Junior” Soprano, podia-se dizer que Chase conquistara o mundo E então veio “Made in America”.

“Made in America” deixou meio mundo em dúvida, indignado, fascinado e instigado por aquela última cena – em uma narrativa paralela, Tony Soprano se reúne com a família em um restaurante, sentado de costas para a parede após resolver, por meio da maior chacina testemunhada pela séria até então, problemas relacionados à máfia nova-iorquina. Figuras misteriosas entram no restaurante. Tony, sua esposa Carmela e seu filho AJ se reúnem após muitos problemas – de ordem mafiosa e familiar – como a série encerrara tantas vezes suas temporadas, em um tom ambíguo, onde morte e vida se contrapunham.

Em montagem paralela, testemunhamos Meadow Soprano, a filha mais velha do casal, tentando estacionar o carro. Na jukebox, ouve-se “Don't Stop Believin'”, da banda Journey. Quando Meadow consegue estacionar e por fim entrar no restaurante, Tony olha e a tela escurece por vários segundos antes de entrarem os tradicionais créditos finais.

Cena polêmica – que fez muitos inclusive ligarem para a emissora reclamando de perda de sinal – com o tempo “Made in America” foi angariando status crítico e popular como um dos grandes finais da história da televisão. David Chase utilizou a linguagem que criara para a série de forma radical – a violência niilista e a perseverança quase otimista, parecem compartilhar espaço mais uma vez no condicionamento Griffithiano-Eisensteniano criado para a cena; aqui vemos Tony olhar para a frente sempre que ouve-se a sineta da porta tocando. Em paralelo, temos Meadow tentando apressar-se para chegar e, dentro do local, um homem com a jaqueta “Members Only” - mesmo nome do episódio da sexta temporada onde Tio Junior atira no estômago de Tony.

Nessas três alternâncias de plano, começamos a ser guiados pelo som. A música do Journey embala a cena no melhor estilo melodrama, fazendo a vida Tony com a família continuar após terem passado o maior risco na sua vida. Ao mesmo tempo, a sineta continua tocando, de forma insistente e Tony, mesmo tendo ser uma “pessoa de família”, não consegue tirar os olhos da porta. O homem com a jaqueta Members Only vai ao banheiro. Meadow faz menção de entrar.  Fade to black.

Chase, ao tirar o ponto final da sua série, estilhaçou a narrativa clássica. Apesar do criador da série e da cena falar que “não tem interesse em explicar, defender, reinterpretar ou adicionar”, a teoria mais acertada é que, como a série era vista pelo ponto de vista de Tony Soprano (quando o mesmo ficou em coma, vivemos seu sonho). Se a sua vida acaba, a série também acaba; em uma cena de “Sopranos Home Movies” reprisada em “The Blue Comet”, seu cunhado e companheiro de máfia Bobby Baccala afirmara em “foreshadow” sobre como a morte para pessoas como eles pode ser silenciosa e repentina: “você provavelmente nem deve escutar acontecer”. Se confere, a morte os alcançou desta mesma maneira; mas o caso contrário não cai propriamente em contradição: Tony  ficaria vivo mas, como percebemos na dinâmica de ritmo condicionado da cena, desconfiado para o resto da vida de ser morto em um momento de distração – como pode ter acontecido no momento em que Meadow entra e o homem de jaqueta volta do banheiro.

Pelo sim e pelo não, o que se ganha é o final revolucionário de uma série revolucionária; que mais abriu estruturas e retratou do que propriamente contou uma história linear – que utilizou a relação entre câmera, decupagem e montagem de forma que conseguiu intrigar a todos, já tendo lançado mão do mesmo jogo de espelhos onde ameaça e salvação eram reflexo um do outro (quando Tony escolhe quem irá espancar após voltar ao trabalho após ser baleado; quando percebe a pouca sinceridade dos risos que recebe quado conta piadas; quando Chris tem que escolher entre a lealdade à Omertá e o amor da sua vida, Adriana).

Em suas histórias de homens difíceis e sombrios que conseguem ser tanto o homem de meia-idade sentado na rua a contar piadas quanto um extorquidor e assassino impiedoso, Chase sempre lançou de meias verdades, desinformações, pontos de vista enganosos, arcos que mostram mas não respondem. Em “Made in America”, Chase fez seu grande ato, elevou a misé-en-scene acima de tudo e utilizou das ferramentas narrativas que sempre lançara mão para baixar as cortinas da forma mais inconformista possível. É de se constatar que, nos seus últimos trinta segundos, nunca Sopranos foi tão Sopranos.

Comentários (2)

Gian Couto | domingo, 22 de Março de 2015 - 16:04

Excelente série. E, ao que tudo indica, o final é esse mesmo.

MORENO | segunda-feira, 22 de Junho de 2015 - 10:49

Em minha humilde opinião sobre essa ótima série, acena final abre espaço para o expectador pensar como deveria ser o destino de Tony Soprano por tudo de bom e ruim que fez ao longo de sua vida, Foi isso que me passou deixa o final em aberto para quem assiste pensar sobre isso.

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