Certa vez, um tal Orson Welles refletiu, nas seguintes palavras, um pouco sobre a sétima arte. Abre aspas: “O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho”. Vários são os filmes que já nos encantaram pelos mais diversos atributos – sejam eles estéticos ou narrativos – mostrando que não há uma linha nítida a separar o possível do impossível na hora de converter uma ideia estabelecida no papel em imagens coesas e artisticamente notáveis. Recentemente, em passado não tão distante, o visionário James Cameron trouxe ao mundo o épico de ficção Avatar, promovendo uma revolução no tocante ao conjunto de técnicas passíveis de serem utilizadas no momento de dar vida a algo tão pretensioso. Um ano antes da estreia desse verdadeiro estrondo concebido pela mente fértil de Cameron, estreava nas telonas uma adaptação ousada.
Na época irmãos, as cineastas Lilly e Lana Wachowski – hoje irmãs – finalizaram e entregaram Speed Racer, obra baseada tanto no anime quanto nos mangás de Tatsuo Yoshida. Resultado? Um fracasso de público e crítica, retumbante por sinal. Hora de voltarmos ao ponto inicial. Speed Racer mostra não conhecer fronteiras, isso é claro, é evidente. Desde sua introdução, com uma montagem dinâmica e a presença constante de cores nos cenários, além do indubitável uso corajoso de CGI, notamos o quão imaginativo é aquele universo que está defronte do espectador. Usarei aqui, como sinônimo de outra palavra já utilizada acima, o adjetivo arriscado, o mais cabível no contexto. As irmãs se apropriam muitíssimo bem da gama oferecida pela linguagem cinematográfica para afastarem o filme, que pensaram juntas, de uma zona perigosa, a do lugar comum. Jogada de risco, a depender da perspectiva, mas certeira.
Logo de cara, percebemos um match-cut tendo como foco o pé de Speed, incontrolável que só ele, em momentos de ansiedade distintos. Um paralelo entre diferentes fases da vida do protagonista é estabelecido de maneira eficiente e pouco óbvia. Além do uso de inserts, também conhecemos a família do personagem principal e a casa onde vivem, graças ao uso extensivo de chroma key em tudo quanto é espaço. Felizmente, uma opção que se mostra coerente com a visão proposta e que permanece ao longo do filme de maneira muito bem articulada às funções narrativas.
Outra questão técnica a ser destacada é inerente às transições de uma cena para outra. Ao invés do corte seco, algo mais bem bolado em termos criativos é posto para apreciação. Uma transição com rostos sobrepondo-se à imagem a servir de background. Por vezes, duas feições tomam a tela ao mesmo tempo enquanto algum pano de fundo abstrato ou ilustrativo divide nossa atenção. Speed Racer é exercício visual muito engajante nesse sentido, trazendo um frescor que, por sua vez, contrapõe cuts e até mesmo enquadramentos habituais. Um trabalho que se encerra abraçando a artificialidade da tecnologia. Tecnologia essa em prol do espetáculo.
Eis um filme que não tem medo de parecer irreal, um filme que, ao contrário do que se espera dele, só tem de real mesmo os humanos de carne e osso. De resto são bugigangas e mais bugigangas tecnológicas, usadas tanto como recurso extradiegético para adornar o filme nessa maleabilidade de texturas computadorizadas (não tem vergonha de ser imbuído nos efeitos digitais) quanto como munição para os competidores tirarem da pista uns aos outros nas provas estilo corrida maluca. Em suma, nesse destrinchar da mecânica macro do filme, um produto audiovisual extravagante, aqui como um adjetivo positivo, tendo em vista o filme fazer esse seu estilo todo peculiar funcionar de maneira tão acoplada ao que nos é aventado desde os primeiros minutos de projeção.
As temáticas do filme são simples, porém não simplistas. O modo como são tratadas, mesmo que por vezes interrompidas por alívios cômicos bobocas – a saber o irmão de Speed e seu companheiro símio – encanta. O diálogo entre pai e filho - resgatando nostalgicamente tempos que não voltam mais -, a reflexão proposta acerca da ideia de família, os dilemas envolvendo o protagonista, o delicioso contracenar romântico entre Emile Hirsch e Christina Ricci (lindíssima e carismática) e as dificuldades de um personagem principal perante decisões quase que impostas pelas predatórias práticas corporativas. Além dessas questões suscitadas, vemos um maniqueísmo manifesto aqui, notadamente em razão do Sr. Royalton – algo que não chega a incomodar, dado que o filme, desde seu início, deixa explícita sua intenção em trabalhar com arquétipos e caricaturas, e o faz muito bem. Outra insigne questão, que aliás é ressignificada durante o longa, é a que envolve a relação desenrolada entre Speed e seu irmão mais velho Rex.
*o próximo parágrafo contém spoilers do filme.
Rex permanece como um fantasma ao longo da narrativa e acende na mente de Speed uma luz sempre que o mesmo, pilotando seu Mach 5, encontra-se ou diante de decisões complexas a serem tomadas ou perante a desafios ocasionalmente degradantes pelos quais pilotos profissionais têm de passar. Ademais, Speed constantemente relembra momentos ternos que vivera ao lado do, até então, falecido irmão, bem mais velho e calejado do que ele. A revelação final, mostrando o enigmático Racer X confessando ser o próprio Rex, soa como uma porrada no peito, quase que em gesto heróico, quando os dotados de superpoderes revelam sua identidade secreta. Todo o imaginário criado, tanto por nós quanto pelo protagonista em volta do misterioso piloto do traje preto, dissolve-se e, concomitantemente, consolida o filme em um patamar ainda maior do que aquele em que vinha se colocando. É algo que só fortalece os vínculos afetivos testemunhados ao longo do captar cirúrgico das Wachowski em torno de figuras e tipos hiperbólicos que, embora exagerados, servem tanto à função de passar a mensagem quanto à função de inocular boa dose de entretenimento. E é bom lembrar que, não obstante, o filme pareça calcado em mero artifício a entreter a plateia; ele não é fundamentado apenas no recurso tecnológico solto, desacoplado, mas sim num recurso em prol de. Aqui, de uma narrativa envolvente e de uma estética manejada por quem entende do riscado.
Certamente mal compreendido à época de seu lançamento, Speed Racer parece sobreviver bravamente ao tempo como um filme, em definição ousada, vanguardista, ainda que em espaço restrito, numa bolha cinéfila que sabe reconhecer suas virtudes enquanto cinema experimentalista desconhecedor dos muros e barreiras. A coragem das Wachowski fez a alegria de uns, ao passo que o hate de outros. De qualquer forma, estando você do lado que estiver, Speed Racer é um filme que brinca na sua narrativa, que na chave do cinema família funciona como poucos e que, irrefutavelmente, não tem medo de ser feliz e de ser “brega”. Cinema que não segue a receita de bolo, mas que a cria, inventando como um criança, que coloca o corante verde no bolo que era pra ser azul. Gostoso fica do mesmo jeito.
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