Um espectro errante anda pelas ruas de Paris, chega em um prédio, invade um apartamento. Acorda fechado em um saco de dormir, se liberta do mesmo e toma um banho. O apartamento onde está, vazio, é palco de uma performance desconcertante de Tom Mercier, que evade dali nu por completo ao perceber que já não tem mais suas coisas. Tudo sumiu, ele tem frio, então corre pelas escadas pedindo abrigo, pedindo a compreensão que lhe faltou de onde vem. Toda essa corporalidade são os minutos iniciais de Synonymes, merecido Urso de Ouro para Nadav Lapid no último Festival de Berlim. Abre-se a esse lugar a principio visceral uma ode a palavra escrita e falada, em um projeto que não desembarca todo dia em festival algum. Ou circuito algum.
As fontes de inspiração são inúmeras, mas tem uma ligação com a nouvelle vague que Lapid não tenta esconder em determinadas cenas e conotações, em olhares, em determinadas picardias. E o trabalho fronteiriço entre a performance artística, a narrativa desconstruída, a mise-en-scène provocativa e despojada, que leva ações e personagens para o inusitado a cada nova cena num turbilhão de sensações, são dos muitos valores que corroboram uma imersão muito particular no filme, não permitindo uma aproximação simplificada. A linha radical de conexão com o que se propõe em matéria de discurso não permite a metade de um mergulho do espectador; exige concentração total, porque a cada nova curva do percurso uma nova possibilidade se desenha, e essa possibilidade é real de renovar as certezas sobre o material filmado.
Yoav, além de performer, é um corpo exposto frontalmente para inspiração de Emile, que o faz (re)nascer para uma vida de escolhas contínuas no espaço francês-burguês, espaço esse que é um lugar de trânsito comum para Emile, e que tem nessa relação a chave de possíveis respostas do filme. Parceria que é montada desde seu início, Yoav é o instrumento de Emile para um mundo desconhecido e infinito, e o primeiro "obedece"o que seu mantenedor orienta: se é para representar um papel social sem atribulações e completamente livre de amarras, Yoav executa com perfeição. A partir do momento que começa a "contar sua história", Emile "sai de cena" para só restar Yoav, em seu universo de real fantasia.
A partir do momento que os contadores de histórias "se separam" (ainda que momentaneamente), Synonymes investe em sequências de ação tão insólitas quanto sua proposta, mas que corroboram o caráter de investigação da potência mítica do filme, se mantendo em um lugar de imaginação fértil e reverberando seus componentes fantásticos a uma posição de cada vez mais centralidade - Emile lega a Yoav muito mais que roupas, dinheiro e um lugar para ficar, ele o posiciona como ser autônomo e ativo fisicamente, que tem personalidade o suficiente para abandonar sua pátria, sua língua, sua família, para viver uma vida dândi numa França aprazível a alguém como ele. Coincidência? Não no mundo da imaginação.
Lapid faz valer sua narrativa em três instâncias, tanto como peça independente que rememora os anos de 1960 em uma Europa de sonho, quanto como petardo político-social de denúncia e protestos contra o Estado israelense, e até como produto de fantasia obra de uma mente entediada. No acúmulo de possibilidades, o filme não faz qualquer escolha e aceita ser todas. Com um belo elenco dominado pelo desempenho avassalador de Tom Mercier e um trabalho de edição dos mais superlativos do ano, Synonymes é um caso cada vez mais raro no cinema, onde suas ferramentas e sua bagagem narrativa complementam uma experiência, mas não a encerram em si. São motes de entendimento e ampliação de discussão analítica sobre o ato de contar histórias e o poder que as palavras tem dentro de cada uma delas (ou seja, o mote do Cinema), mas não anula o maravilhamento diante do que é puramente cinematográfico e sem necessidade de bula.
Filme visto na 43ª Mostra de São Paulo, em outubro de 2019
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