A um filme de Zhang Yimou, em sentidos mais que diversos, até mesmo ontogênicos, se bem de perto nos aproximarmos, nunca faltou uma mulher. Como potência, como chaga, como possibilidade, como indubitável – e não seria diferente, pois, com este mais recente Shadow (Ying, 2018): parte igualitária de um princípio filosófico, de um nó, não há história de reis ou sagas subjetivas sem Mulher; e a China bem conhece a tensão entre a vida menor e a maior Vida dos sujeitos, uma tangente escrita e a diante da qual este princípio feminino é, não excluído, mas distorcido na história. Sob o império dessa deformidade a que chamamos de nação, muito como os gregos clássicos ou os americanos de séculos, poucos territórios, poucos conjuntos de muitos singulares, produziram tamanho matrimônio entre heróis e Estado como a China, a inquietante mãe sempre viva pelos filmes do diretor. Mas, independentemente de quanto o tempo tenha roído a una sacralidade de tais divisas geográfico-humanas, um enigma persiste, e persiste ainda mais confuso nesses lugares onde poder e unidade menos chegam a um acordo – ou melhor, sabem esconder seu desacordo.
O filme, começa, então, antes de si mesmo, num quesito de tradução linguística, nisto que, também, às suas maneiras particulares (literatura? poesia? gíria? documento?) une algo que é enunciável por um certo “todos” e que, no entanto, está sempre a cargo de um único. As “sombras” de Yimou são indivíduos desde a infância tão semelhantes um ao outro que possam ser trocados a serviço de tramas de governo, participantes escondidos de golpes sorrateiros de trono, duplos que devem corresponder às feridas de seus “originais” para manter a veracidade dos dois corpos que são só um; sombras, entretanto, no geral, são produzidas somente na presença de uma fonte luminosa, e muitas vezes trocam de lugares de modo a embaralhar as vidas. Deixemos o fato repousar. No título original e de única palavra, ying, o caractere chinês, bem adequado aos mistérios rizomáticos da própria língua, remete simultaneamente 1) a uma flor e 2) a um herói, ou àquilo de heroico que há em alguém. Receptividades e feitos, unicidades (múltiplas: uma flor nunca é a única de sua “espécie”) e unicidades outras (múltiplas também: um herói nunca é heroicizado sozinho, nem seus feitos são “para ninguém” ou para si mesmo).
Um rei e sua irmã, um herói ferido e sua esposa, sua sombra e a aliada, o comandante e sua nação, que é seu rei, que é seu povo, e o jogo poderia se espelhar quase infinitamente, não fosse a fagulha da trama riscada por uma traição que a própria trama fará múltiplas. Porque uma trama nunca está sozinha, sabemos. E não são os asiáticos do extremo leste aqueles a reclamar o trono dos twists (Chan-Wook, Kar-Wai, John Woo, Kiyoshi Kurosawa, Jee-Won)? Uma torção não é tão-somente ver o outro lado, mas mover-se o suficiente para enxergar os dois. Toda ceda finda, operisticamente, num grito daquilo que precisa ser real diante das farsas submersas. Todo aproveitamento dura pouco; toda angústia esconde sua solução nessa dança de tecidos e ferros acinzentados. Em nome da honra, do nome, e do desejo, os homens de Shadow serão sempre bipartidos, ainda que incendiados por um desejo das entranhas próprias. Curioso, pois, mais que óbvio até, que Yimou trate de resumir o filme a um palácio, seus cômodos (os secretos inclusos), a rua de uma cidade “inimiga” e uma arena de batalha, todos dos quais concentrarão a cicatriz também dúplice do yin-yang como arena e plano inicial. E ainda que não seja raro ao cinema concentrar sua cenografia em espaços parcos, a resultante de cor é paradoxalmente monotônica, aqui: cinza, cinza, cinza. Até o sangue é escurecido. Cinza precisamente porque as veias de tramas são impuras.
Comumente associado ao negativo, ainda que concentre o escuro e o claro, o cinza não é apenas a paleta, é o pigmento indeciso que colore tudo. Ying e Yang? Quando dizemos que o problema é de uma lógica da linguagem, ele o é numa capacidade que nem a linguagem, mas também só a linguagem, pode lançar: por que, quando não são turvas o suficiente para simplesmente unir “rei” e “desafio”, as sinopses desta obra tanto dão ênfase ao elemento-Mulher? Porque “irmã”, “esposa” ou “concubina” não categorizam o suficiente o papel feminino na história dos tronos: é preciso que a irmã e a senhora ultrapassem todos os signos a elas indicados, que vistam a adaga e o guarda-chuva enquanto presentes e utensílios que também são armas, mas armas demonstráveis, princípios de injustiça/segurança e sangue/ofensiva. A megalomania do indivíduo que salva o mundo (que ele sequer conhece) é reduzida às mãos minoritárias, que não puderam escolher – e ainda assim definiram a escrita. É a princesa que deve duelar com aquele que quer fazer dela concubina, e nenhuma assimetria de forças ou técnicas poderá segurá-la. Para entender a IMAGEM da vitória, a (o) sombra precisava aprender a manejar o guarda-chuva como um princípio de água: sua ação é carregar, desviar, retomar, escorregar maciamente como a chuva para retribuir o ataque, COMO retribuição de ataque. Algo que não aprendeu sem entrar numa dança de chuva como Yimou jamais havia filmado antes.
Talvez uma das perícias mais gastas do cinema para driblar o tempo e mostrar suas microcomposições num mesmo golpe, o slow motion se transmuta, aos heróis, numa dança de assimilação e de sobrevivência, faz dançar o rodopio da água se moldando aos pés e aos tecidos porque a água é a arma natural do Rei, e, em respeito a isto, a ofensiva tramada deverá ter sua conclusão num dia de chuva. Naquilo que nos conecta à terra, os pés, a coreografia dos atores se concentra, alinha o ar dos deslizamentos ao chão por onde as histórias dão seu pontapé. Uma desaceleração que faz os primeiros passos já conterem todos os movimentos, e não é por acaso que a atenção parece elástica, dilatada, já no primeiro segundo em que um corte anuncia o tudo-ou-nada. É só depois de quase 120 minutos que se perceberá que havia água cerceando, alimentando, planificando, originando o que coloca um reino aqui, outro ali, e uma disputa descontrolada ao meio? A raridade de um conceito entrelaçado, constituinte, co-presente a qualquer ação. Nas grande parte das filosofias orientais, também sabemos, natureza e homem são dupla-face; não há, não deve haver, como na ponta dos dedos do pé, desequilíbrio.
Recentemente morto, Andrzej Zulawski disse do cinema que este era um filho bastardo de todas as artes. Bastardo, aquilo que nasce fora da duplicidade oficializada, decerto, mas que também, por rebatimento, carrega mais que duas referências, “genes”. É um problema de vivência natural dos corpos (bailarinos, perante outros sujeitos, sempre parecerão deuses) que Shadow não deva ser tomado sobretudo como uma dança?, princípio este essencialmente da performance, como aquele dos atores, uma vez que não há bailarino ou ator sem que haja ação em cima de recepção, e vice-versa? Não há um comunicado ao rei, não há uma ação incondicional delegada aos heróis, não há uma querela entre territórios que não deva ou precise ser resolvida pelo movimento sutil de duas únicas mulheres. É a esposa que ensina à sombra a dança liquefeita, observada, que é todo o duelo subsequente; a princesa que aceita a oferta de sua escravidão só para torná-la golpe de estado. E, ainda assim, aos olhos apavorados da última mulher restante olhando a fechadura do segredo tornado escândalo íntimo, aos olhos que leem a história enquanto inteira, a história é ela mesma uma farsa pintada como letras fugazes pelos homens. Palavras do Rei.
Em alguns momentos, “não há certo nem errado, o que está feito está feito”, dirá a Madame (esposa), e repentinamente tinturas de cinza tingem completamente as narrativas já de um corpo de cor só: a China à época de seus Três Reinos tem como único branco composicional a textura que a complementa com o preto: as arenas Yin-Yang são impuras e perpétuas, tanto um quanto o outro, ovo e galinha; não importa de que lado se profira o reino, independente da bandeira, o poder que se grita como total e não vê a assimetria que o originou, este poder tem a sustentação escandalosa de um farelo, só serve a si mesmo. O cinza, pois, é também a corte, o volume de línguas repetidas que ressoam a lei oca do Rei cego, o cinza é essa incapacidade dos homens que só balbuciam e que deixam às mulheres a tarefa de levar o extremo da resolução à sua resolução, simultaneamente recebendo a culpa por um “excesso” que foi apenas o único-possível e o peculiar título de “masculinas”. São nebulosas, essas leis originárias. Originárias? Condicionais – melhor dito.
Yimou lança um jogo como a língua falada lança, desejando saborear, o lance de dados e efeitos que ela deseja ser certeiro. Mas objetos serpenteiam pela língua e a ela devolvem suas linguagens particulares. Yimou trai a língua em nome de si mesma: flor e herói, a carapuça do herói pelo valor de uma estratégia de mulher, a feminilidade como uma valoração heroica encarapuçada. Lembremos das adagas, das pistolas, das lanternas, das árvores e das caixas de objetos de seus filmes antecessores. O cinema recai, invariavelmente, em objetos que amalgamam e ultrapassam os sujeitos: o guarda-chuva é lâmina e receptor, a chuva lhe escorrega como deve escorregar o corpo que abriga o duelista para expulsá-lo. Há um absurdo inumerável de coreografias que o escudo escorregadio traz quando os soldados se encasulam na investida contra o reinado inimigo, protegendo-se da água ao mesmo tempo em que por ela se infiltram, e se é somente implícito que do guarda-chuva o encerramento fílmico se debruça por uma fechadura, é porque ao olho incansável tudo não só fala, como responde e observa de volta. Tudo dança.
Bela defesa.