A HISTÓRIA DA ETERNIDADE - Uma Rapsódia sertaneja
Agmar Raimundo (Contêm Spoilers)
Quem não se encantar com a beleza deste filme não possui sensibilidade. A opção de um roteiro esquemático é deixada de lado, aqui, o que encontramos são momentos divididos em atos poéticos utilizando como pano de fundo a visão mais bizarra do sertão nordestino. Tudo começa com uma canção melancólica parecida com uma elegia sonora embalando um cortejo fúnebre pueril. Neste ponto do filme, para quem tiver um olhar perspicaz, deve prestar atenção numa sacada bem elaborada pelo diretor do filme: A cena representa a morte de uma criança, morte essa que seria a passagem da vida para a eternidade. A mãe da criança chama-se Querência que é a atriz Marcela Cartaxo que, anos atrás, mais precisamente em 1985, interpretou Macabéa do romance “A hora da estrela” de Clarice Lispector, cujo clímax é senão sua morte, ou seja, a hora da estrela, a hora em que ela faz a ponte entre o material e o espiritual...Infinito. Seria coincidência? Só para completar essa lacuna, além de Marcela Cartaxo, também faz parte do elenco deste filme, Irandhir Santos e Cláudio Jaborandy, todos atuando na novela “Velho Chico” da Globo.
Para Querência sobrará dor, sofrimento, solidão, um vazio rasgado no peito, evasão, abandono, desilusão, falta de fé, falta de amor, falta de vida. Ali estava sendo enterrado o seu único elo de vida. Logo em seguida seu marido a deixaria, algo que para ela não caberia nenhuma importância. Sua lamúria é tão intensa. Sua angústia é tão violenta que ficar sozinha era poder ter um pouco de paz no inferno de sua alma. A cena se expande, em “close up”, como em riscos expressionistas a fotografia frisa a personagem sentada arquejada e despojada numa cadeira trouxa com um copo sujo a sua frente. De forma súbita, dá um golpe no copo e encarcera uma mosca a lhe rodear, num jogo de olhares e instantes ela reboca e arrasta o copo, como se estivesse brincando com os seus sentimentos, presos eles estariam ali, como estaria o inseto. Findos alguns segundos, com forças já cessadas, a mosca é solta e Querência volta a chorar. Será que ela queria ter a liberdade que aquele ser minúsculo estava impondo a ela?
Chegado ao final da primeira cena e o corte da imagem para a sequência do segundo “take” para aqueles que possuem sensibilidade à flor da pele é bom ir se preparando, pois a atmosfera que a cena construída nos apresenta é qualquer coisa de surreal: A partir desta cena podemos entender a contagem do tempo, que aqui é psicológico. Imaginem-se sozinhos, a luzes de candeeiro, imagens de praias e litorais que aparecem e somem aleatoriamente, numa década distante, embalados pelo sucesso do momento. È de arrepiar! A música se chama “Forever” que tudo tem a ver com o título do filme, quem a canta é a outrora famosíssima banda paulista Pholhas, que fez muito sucesso, também, aqui, no Nordeste, em festas de baile que traz como influência, em seus vocais, os agudos dos irmãos Gibbs dos Bee Gees, que fez muito sucesso na década de setenta. A letra da música é bem romantiquinha, característica para os jovens da época e quem a esta ouvindo é Afonsina de apenas quatorze anos.
O filme é totalmente desconstruído por belíssimas metáforas, alegorias, linguagem semiótica e comparações. Mas o mais importante é que o roteiro não busca sempre a mesma linguagem corriqueira dos filmes de sertão: Sofrimento pela seca e pela fome, pobreza. Aquelas características que só vê o nordestino como o injustiçado, o bestializado, o miserável, o invisível. Aqui, há poesia, há drama, há conflitos, há nobreza, há sonhos.
O elenco do filme é pedestal raçudo, forte, mas quem segura o pé do pedestal é o roteiro, sem ele os atores não conseguiriam nada, ouso destacar que não há grandes destaques de atuação. Irandhir Santos, um dos melhores atores da atual geração brasileira é levado a incorporar um personagem originalíssimo, um artista frustrado que mora num povoado esquecido nos confins do mundo sem fim. Ele não atua para o cinema, mas para o teatro, suas atuações são solo, corporais, expressivas, atuações de um gênio que parece ter vindo de uma tragédia grega. Joãozinho, como é chamado, recita o poema “Amar” de Carlos Drummond de Andrade; no meio do terreiro do povoado, coloca duas caixas de som e uma vitrola, dá uma soprada no primeiro disco da banda Secos & Molhados e deixa rasgar as veias do sertão a canção “Fala”
“Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto
Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto
Fala
lá, lá, lá, lá, lá, lá. lá, lá, lá”
e Joãozinho como um Ney Matogrosso sem gosto se contorce e recontorce, faz cena, sem pena, faz daquele contexto a sua história da eternidade, onde ninguém o vê, como deveria ver, nem tampouco, ele vê ninguém, Sem querer ser Ney, ele somente quer se expressar, soltar, deixar, sair, pois ali ele é mudo e quando a performance acaba chega seu irmão, Natanael, o bruto, que não gosta, como ele mesmo diz “desse tipo de macaquice”. Você tá ficando louco?! Depois de discutirem, vem o momento trágico e a mais espetacular interpretação do filme: Joãozinho cai em convulsão num ataque epiléptico. Após acordar em sua casa ele tira ataduras dos cotovelos revelando que os ataques são frequentes e que ele não pode se expor a movimentos bruscos, nem a momentos de estresse. Ele ainda viria a declamar o poema “Cogito” de Torquato Neto e mais uma vez teria outro ataque epiléptico.
Mas a melhor interpretação do filme fica por conta de Cláudio Jaborandy, Natanael, ele simplesmente se transforma no homem da roça, no vaqueiro do mato, aquele que tem a sensibilidade de um Mandacaru. Não consegue demonstrar carinho pelos filhos, nem remorso, tudo com ele têm que ser é na primeira pessoa. Cenas em que está no bar bebendo, entre amigos, ele incorpora com verossimilhança quase que idênticas, todos os trejeitos, a forma de beber, de pedir uma cachaça, uma cerveja, uma rodada, o tipo de linguagem empregada, Não sei, mas parece que ele já tem o treino. Dando uma visitada em sua biografia dá para constatar o porquê das semelhanças.
Eu já disse antes, essa é uma história diferente, um lugar isolado do mundo, pode-se dizer que estamos diante de uma “Dogville” de Lars Von Trier que confronta a sua realidade, em vez de uma caixa e de paredes postiças, o cenário aqui são as próprias povoações, sem retirar nada, panelas, talheres, mesa, cadeiras, enfim, tudo. Dogville é clássico, um dos maiores de todos os tempos, por isso a comparação.
Demos voltas e encontramos o cego que possui sentidos mais apurados que os que possuem a cegueira da visão para o ódio e para o preconceito. Ele abre o seu coração para Querência de maneira tão doce e singela que não daria para imaginar de onde surgira tamanho romantismo ali naquele lugar afetado, afastado, arruinado, sem acesso, lugar que, para se ter acesso às informações o único meio é uma televisão no meio da praça. Querência pede para que ele a deixe sozinha, que vá cuidar de sua vida. Mas ele promete não vai desistir dela e que vai voltar todos os dias. E assim o fez. A valsa de sua sanfona todas as manhãs embalava seu sono e despertava seus sonhos.
Um ponto importante a se frisar aqui é que em mais uma obra sobre o sertão, não percebemos nada de alienante, pois expressa o que é o sertão, em sua simplicidade, sem forçar demais em suas ultrajantes dificuldades que pretendem sempre os sulistas, determinarem para essa parte do país. Aqui não se faz uso de caricaturas, muito menos dos sotaques carregados por uma bigorna gigante e se valendo de tipos característicos.
O desejo, o sonho, a obsessão de Afonsina é conhecer o mar e um dia depois da festa de seu aniversário, seu tio Joãozinho, chama-a para ir vê-lo. Ela sai como uma flecha, sem acreditar. Chegam a um paredão de rochas, tendo a sua frente um horizonte lindo de natureza sem fim (local perfeito) na utilização de cenário para o que ele pretendia. A criatividade do artista não tem fim e a dele transcende. Joãozinho irá encenar e construir semioticamente, com apenas três elementos táteis, a reconstituição de um mar. Fazendo uso de uma narrativa rica em lirismo poético ele induz a jovem a fechar os olhos e começa a envolvê-la no seu jogo de palavras: começando com um pedaço quebrado de espelho que passa pelo seu rosto irradiando feixes de luz, como se fossem os reflexos do sol batendo na água do mar que batem no rosto das pessoas, encandeando-as; ele continua a descrever as sensações agora fazendo referência às ondas do mar, que banham o corpo, a cabeça e o rosto, pega um saquinho de água e começa a despejar na cabeça de Afonsina, somente ri, e para finalizar aquelas vibrações sensoriais ele faz uso de uma concha do mar, daquelas que a gente usa, quando criança, para tentar escutar o barulho das águas, e coloca em seu ouvido perguntando se ela ouve o mar e o vento, ela responde que sim. Por fim, ele pede para que ela abra os olhos devagar e se imagine diante do mar, ele se abre e, diante dela – imponente, Poseidon, Netuno, Imensidão, Eternidade, Infinito, Lindo, o mar. Para ela era aquilo que era o termo. Afonsina precisa voltar, fechando os olhos aos poucos, bem singelamente e numa ressaca de Capitu a força do mar quer leva-la aos lábios de seu tio Joãozinho que logo foge da menina.
Querência aceita finalmente o cego sanfoneiro, eles têm uma noite de sexo. Sexo esse sem nenhum traço de romantismo, distante, da proposta do filme, mas coerente com a realidade dos personagens que não sabiam o que era o aquele tipo de manifestação, enquanto sentimento inerente à sua condição germinal.
Por fim, a chuva chega, a Grande Deusa do sertão, a alegria estampa as cores daquela cena tétrica, todos dançam no picadeiro como palhaços, gritos e ais e o húmus da terra se mistura aos pés dos rapazes que lavem seus animais doentes da seca feroz. O pai surge e logo pergunta por sua filha, mas ela não aparece, ele, então, vai à casa de seu irmão e a flagra deitada ao seu lado, seminua, arrasta-a pelos cabelos até o centro do povoado, no meio da chuva, tenta espanca-la, mas não consegue, Joãozinho diz que a culpa é dele, Natanael derruba-o, dá chutes em sua barriga, pega um pedaço de madeira e num golpe único e certeiro ataca aquela criatura frágil e indefesa jogada ali no chão, matando-o. Quando o fato acontece a chuva deixa de cair abruptamente, dando como resposta que enquanto ela traz vida o homem a recebe com morte..
E o filme que começa com o cego que tudo vê, acaba com sua música encantadora, mas triste. Após sua noite de amor com o amor de sua vida, Querência, ela desaparece, sem deixar rastros, ele não sabe se ela morreu ou o abandonou. Ele continua como antes, em frente a sua casa, todos os dias, tocando sua velha sanfona, sua única amiga, inseparável, esperando-a. Após alguns anos, ele é surpreendido por mãos raras, mãos caras e a música para. É ela, sua Querência, que agora já não estava só, tinha a companhia da herança daquela noite de amor... e sua felicidade e a história de sua eternidade começara ali.
O mar se despede do filme, mas não do sonho e das memórias de Afonsina que continua sonhando sua História da Eternidade
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