A história do pastor negro protestante e ativista político, Martin Luther King, é bastante conhecida. Até mesmo àqueles que não conhecem detalhes, ou nem fazem ideia realmente de quem ele foi, associam seu nome a uma figura histórica. Para uns ele foi eternizado por seus ideais contrários à segregação racial, para outros ele é conhecido somente por sua célebre frase “i have a dream”, enquanto outros se lembram dele por sua conquista ao Prêmio Nobel da Paz. Para quem nem imagina quem foi Luther King, “Selma – uma luta pela igualdade”, como uma cinebiografia, dará um vislumbre sobre o pacifista. O roteiro narra momentos históricos, por volta de 1965, envolvendo as marchas realizadas por ele e seus seguidores, entre a cidade de Selma, no interior do Alabama, até a capital do estado, Montgomery, na luta por direitos eleitorais, em favor da população afro-americana, que sofria explícita discriminação e privação de direitos cíveis básicos.
O filme foi indicado a duas categorias no Oscar de 2015, como “Melhor filme” e “Melhor canção original”. Inda que tenha sido considerado por críticos e especialistas do ramo, o filme mais esnobado pela academia na premiação. O que despertou olhares a respeito de possível discriminação, “coincidência” para um filme que relata exatamente o tema. Portanto, vale salientar a importância de o cinema abordar vez ou outra o tema racismo, que jamais deixará de ser pertinente e adequado em caráter dramático, visto o efeito dessa realidade até hoje em nossa sociedade. Um ótimo exemplo de abordagem, tendo o devido reconhecimento por isso, se deu no igualmente ótimo “12 anos de escravidão”, vencedor do Oscar de Melhor filme em 2014. Talvez na tentativa de conquistar o mesmo feito no ano seguinte, a diretora Ava DuVernay deu vida a “Selma” que, como supracitado, retrata o mesmo assunto, numa ótica mais politizada, revelando o racismo pós-escravatura. Claro que, “Selma” pode muito bem ser reconhecido como uma boa história, de válido argumento, porém, longe de ser memorável como obra, graças à direção enganada de Ava.
A decisão da diretora em personificar Martin Luther king sob um ponto de vista mais cotidiano, foi ao mesmo interessante e arriscada. Arriscada porque é necessário ter total domínio da situação, para não se perder dentro das próprias questões levantadas. Diante disso, nos é revelado seus hábitos comuns, vícios, como também sua involuntária frieza conjugal por se envolver totalmente em suas lutas sociais, e algumas de suas fraquezas, onde ele, por exemplo, recua literalmente durante uma de suas caminhadas, por deter de inseguranças quanto ao rumo das tais manifestações. E é nesse processo que o equívoco direcional aparece, pois, a condução do papel do protagonista se resumiu apenas em alternar as imagens de cidadão comum e emblemático líder que profere exaustivamente frases de efeito, tornando assim instável sua composição no geral. Ora desconstruía um ícone, ora humanizava um historiador, sem um propósito claro. Ficou apenas a forçada impressão de que pretendia-se desendeusá-lo, não importando o quanto se pesasse a mão.
O ator David Oyelowo, por sua vez, na pele de Luther King, está elogiável, bem caracterizado, entregando uma eficiente atuação. Ele está totalmente entregue ao personagem; em cada diálogo seu, é percebido os sentimentos que o ator quer transpassar. Mas é na hora dos discursos que David entrega seus momentos mais inspirados. O elenco em si é muito compenetrado, contando ainda com a participação da ilustre apresentadora negra norte-americana Oprah Winfrey, agenciando, quem sabe, peso comercial à trama.
Existem qualidades técnicas e visuais em “Selma” que merecem ser mencionadas. Sua fotografia é primorosa, de um bom gosto a se destacar. A trilha sonora é densa e angustiante, adequada à ambientação, assim como os figurinos. Se bem que, o destaque da produção se dá mesmo pela coragem de se revelar nos cinemas esse triste e vergonhoso fato na história dos EUA. Para o espectador, principalmente àquele pouco familiarizados com fatos históricos, será uma experiência revoltante deparar-se com o pensamento pedante de supremacia branca da época. Falar sobre o assunto, inda que soe antiquado para alguns, é tocar na ferida. É reconhecer que após anos e anos, até hoje nos defrontamos com resquícios dessa ignorância. E por tudo isso, “Selma” tem uma válida alegação, acontece que, este filme podia mais, podia ir além, podia dar realismo digno ao contexto, pois, notáveis atores não faltaram aqui para que isso fosse realizado…
O embate covarde de militares munidos com cacetes, em oposição aos negros em manifestação pacífica, partindo da cidade de Selma, é o ponto alto do filme, e a partir dai começa o grande problema, além de o ato ser entregue logo de cara, enfraquecendo significativamente o restante da história, a forma como foi realizada se mostrou ineficaz. Os artifícios baratos para dramatizarem ainda mais este ataque são resumidos pelo uso de câmera lenta e trilha de fundo melancólica, porém, justificável, considerando a veracidade da história, merecendo por tal motivo ser revivida com tamanha carga emocional. Porém, ainda que tenham tido cuidado com a exposição do confronto, inserindo uma neblina durante o ocorrido, que não o tornou explícito, nem gratuito, tampouco leve, o momento se mostra ensaiado demais, transmitindo inverossimilhança. Independente da tentativa óbvia de emocionar, isso não acontece, não funciona, e nem atinge o espectador como se espera, justamente por ter ficado bastante teatral e demarcado. E por esse ritmo discorre o restante do longa, retirando completamente a naturalidade dos verídicos acontecimentos. Mesmo sendo o roteiro bem explorado e tendo seus muitos acertos, se perdeu piamente na hora de convencer em sua execução, tomando um rumo inautêntico, se resultando em um clima imprevidente, mesmo contando com a interpretação do nível de Oyelowo. Para uma história inventada poderia até ser satisfatório tal comando, afinal, o filme tem seus momentos fortes, ousados, até sensacionalista por algumas vezes, que costumam funcionar em projeções fictícias, só que estamos falando de uma reprodução fidedigna, como foi à história de fato, e que, infelizmente não foi repassada assim. Repito, este filme tinha “a faca e o queijo na mão” para ser um dos maiores achados da atualidade, ainda mais por se tratar de uma personalidade lendária (particularmente admiro), em um dos maiores movimentos da história. Deveras não fosse esse sobredito gerenciamento cênico, interferindo diretamente na credibilidade da obra, teríamos um filme marcante, digno de homem marcante.
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