As vezes, certas palavras que pronunciamos ou frases machucam mais que agressões físicas e em alguns casos também causam grandes confusões e certos conflitos e alvoroços. Infelizmente, algumas palavras erradas do diretor David O. Russel foram responsáveis por fazer com que o excelente filme "Três Reis" fosse relegado ao esquecimento e desprezo por parte do grande público e da crítica. Bem, voltamos lá ao ano de 1999, quando o filme já participava de vários eventos de lançamento e a equipe de atores e produtores o promoviam conjuntamente. E aí, em determinada cerimonia, um repórter pergunta ao diretor sobre como teria sido realizada as incríveis tomadas de uma cena em que envolve o percussor de uma bala dentro de um corpo humano, ah! Russel nem piscou, com a cara mais lisa do mundo, alegou que certos executivos haviam comprado cadáveres de corpos humanos legítimos no mercado negro para a realização do filme. Após esse acontecimento, Russel iria vir a público novamente para explicar que o que tinha tido era uma brincadeira, mas infelizmente o estrago já tinha sido feito. Críticos fervorosos condenaram o filme e milhares de espectadores fugiram dele. Uma pena, pois "Três Reis" é uma excelente pedida.
O filme começa como um sinal de mudança de tempos, anunciando a metamorfose da era belicista americana, retratando a Guerra do Golfo sob uma ótica singular e de humor extremamente negro. A maneira jocosa, bastante diversa de como era retratada o conflito pela imprensa na época e mais diferenciada ainda da cobertura que fora realizada na guerra americana anterior, a do Vietnã e nisso, foi uma boa maneira de David O. Russell mostrar que os tempos eram outros, esta era a Guerra da Mídia, em Nam a opinião pública derrubou os EUA, e este erro teria de ser evitado a todo custo. A aventura com premissa escapista joga o trio de protagonistas numa curiosa caça ao tesouro, repaginando os filmes de pirata, atualizando-o não só na linguagem textual, mas também nos cenários, saindo os sete mares para explorar o desértico cenário do Oriente Médio e tirando os estereótipos de piratas desregrados e maltrapilhos, pondo militares porra loucas no lugar. Brilhante.
David O. Russel tem tido muito reconhecimento ultimamente, mesmo que essa vertente não tenha agradado unanimemente público e critica. Suas duas indicações ao Oscar na categoria de Melhor Diretor em 2010 por "O Vencedor" e em 2012 por "O Lado Bom da Vida" foram recebidas com muitas reclamações pela grande maioria. Eu particularmente achei os dois filmes muito bons e gosto bastante do trabalho do diretor. Não assisti seus dois primeiros filmes, mas esse exemplar aqui, os dois já citados, "Trapaça" e Huckabees" são dignos de reconhecimento não só pela qualidade técnica da direção, mas também pelos incríveis roteiros escritos por Russel.
O roteiro de Russel segue uma linearidade impar, contradizendo a maioria das obras ianques em relação as guerras em que os States se meteram. Ao contrário do sentimento e necessidade heroica e patriota remetida em varais películas norte-americanos, Russel retrata seus soldados aqui, única e exclusivamente pessoas normais que visam mais seus interesses pessoais do que o enaltecimento da nação do Tio Sam. Ao assistir o filme, não se surpreenda se tiver lembranças do clássico "M.A.S.H" lá dá longínqua década de 70 que também trata o tema da guerra com bastante cinismo e um certo humor peculiar e negro como exemplo a cena da explosão de uma vaca e um encerramento totalmente fora de contesto e seco. Como já mencionei, as motivações dos personagens são extremamente egoístas, mas em determinado momento a busca pelo ouro fica um pouco de lado e a frustração por não conseguir concluir a missão designada toma foco.
Pra quem pensa que a trilogia Bourne inaugurou o protocolo de câmera tremida está muito enganado, em "Três Reis", Russel já instaurava muito sacolejo de câmera, cortes rápidos e ângulos destoantes, imprimindo um tom mais documental a fita. A fotografia do filme que ficou a cargo de Tom Siegel é outro grande triunfo do longa. Siegel utilizou técnicas de lavagem especial para que a imagem ficasse o mais saturada possível, efetuando cores com tonalidades amadeiradas tentando que as películas ficassem o mais real possível, envolta no árido deserto do Iraque. O elenco é razoável e até Ice Cube se sai bem, responsável por boa parte das cenas cômicas eu particularmente achei bem intrínseca sua escolha devido ao tom da fita. Spike Jonze, que futuramente viria a se destacar bastante no posto de direção e a porta ambulante Mark Wahlberg não fedem nem cheiram. Completam a equipe Nora Dunn e o sempre competente George Clooney na pele do Major Gates.
"Três Reis" não é um filme de guerra, é uma sátira a guerra. Com toques de humor negro, boas cenas de ação e roteiro bem amarrado é realmente uma pena que a fita tenha caído no esquecimento ao longo dos anos. A riqueza do roteiro escrito novamente pelo próprio Russel baseado em história de John Ridley faz referencia a fábula religiosa que envolve os três reis magos, viajantes estrangeiros que cruzaram o deserto iraquiano carregando um tesouro. Um canção que resume bastante a película é "In God's Country" do U2, executada em determinado momento. "Three Kings" é um dos filmes mais inteligentes e corajosos dos últimos tempos, e merece ser redescoberto.
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