Se você perguntar para um cara que é viciado em cocaína se ele é viciado em cocaína a resposta dele será que ele não é viciado em cocaína. Não só para esse cara que é viciado em cocaína, mas qualquer outro tipo de substância entorpecente, ou jogos de azar, ou sexo, na maioria esmagadora dos casos a pessoa que é viciada e tem um distúrbio com certo tipo de coisa ele não irá assumir prontamente, ela não aceita que possuí um problema a ser resolvido e precisa acionar alguma pessoa ou organização para ajuda-la. Essa pessoa no seu intimo engana-se a si mesma, provocando inúmeras situações nocivas a outras pessoas que convivem a sua volta, ela apenas acha que pode resolve-lo a qualquer momento, mas a realidade é outra, ela na verdade não pode e não consegue. Hoje, pode se dizer que o álcool talvez seja a droga que mais mata no mundo, pois é vendida legalmente. Infelizmente, grande parte de violência doméstica, acidentes automobilísticos, doenças cardíacas e outras doenças são relacionadas ao vicio a bebidas. Lamentavelmente, beber já é uma tradição cultural em várias nações ao redor do mundo, também se gera muitos empregos e parece que esse processo é difícil de acabar. "O Voo" levanta várias situações e talvez a principal seja o alcoolismo...
Passado os últimos dez anos, trabalhando e aprimorando a técnica de captura de movimentos, Robert Zemeckis viu seu trabalho praticamente ir por água abaixo com os olhos realmente reais de "Avatar" e cá entre nós "O Expresso Polar", "A Lenda de Beowulf" e "Os Fantasmas de Scrooge" são filme bem ruins, mas o fato é que Zemeckis já não precisa provar nada para ninguém, só sua trilogia "De Volta para o Futuro", "Uma Cilada para Roger Rabbit" e "Náufrago" já vale a carreira de muitos diretores por aí e podem chorar o quanto quiserem "Forrest Gump" é obra prima sim! Passado esse período das animações, Zemeckis volta com um triller sobre um exímio piloto que tem sua carreira prestes a ruir pelo abuso excessivo da ingestão de bebidas alcoólicas, o camarada bebe muito mesmo e cheira ainda por cima. Lidando com as pressões constantes da ex-mulher, escalas excessivas de voos, Whip Whitaker vai de herói nacional a vilão numa fração de tempo.
Zemeckis sabe criar cenas tensas e muito bem coreografadas como ninguém, os 20 minutos iniciais envolvendo inclusive a queda do avião são de gelar a espinha, a realidade do que é visto nela é fantástica e frenética. E é de se admirar que seu parceiro de texto, John Gatins tenha elaborado um roteiro tão bom, pois seus outros trabalhos "Gigantes de Aço" e "Hardball" são bem medianos, mas aqui sua história explora bem a contradição da situação envolvendo Whitaker, os questionamentos sobre a existência de Deus e a busca final por redenção. Em certo momento, o capitão Whip esbraveja que beber foi uma escolha sua, ao contrário de muitas outras pessoas que bebem por perderem um ente querido ou um emprego por exemplo, muito bem escrito. Felicidades e mérito para Gatins já que seu trabalho foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro em 2013.
Com uma boa história em mãos, Zemeckis não decepciona na parte técnica. Uma fotografia com tons acinzentados evidenciando a melancolia em que se encontra o piloto, misturando com cores fortes e marcantes é um trabalho bonito de se ver. A trilha sonora do mestre incansável Alan Silvestre também é uma agradável surpresa para os ouvidos. Com muito blues e rock destaque para os clássicos 'Under the Bridge' do Red Hot, 'Gimme Shelter' e 'Sympathy for the Devil' ambas dos Stones traduzem também muitíssimo bem a condição de fim da linha de Whip. Uma circunstância que poderia contribuir para um resultado final negativo da fita que seria um dramalhão mexicano não acontece. Whip sabe que as consequências geradas pelos seus atos poderão ser sua ruína e devastação.
Denzel Washington permanece como um dos maiores atores em atividade, não atoa cobra valores astronômicos para participar de filmes e mesmo assim sempre é requisitado para todo tipo de película e gênero. Com um sorriso carismático e fala serena, mesmo que saíbamos que Whip é um alcoólatra irrepreensível tomamos afeição por ele torcemos a todo momento por sua recuperação. Com uma presença de cena monstruosa e total domínio de cena e do personagem, Washington teve sua atuação indicada para o Oscar de Melhor Ator. Não só ele brilha, mas todo o restante do elenco está fantástico. Mesmo com pouquíssimo tempo em tela a veterana Melissa Leo e James Badge Dale roubam a cena. Bruce Greenwood e Don Cheadle também emprestam elegância e competência a seus papéis. Notoriedade também para a deliciosa e desconhecida Kelly Reilly que começa no fundo do poço e parece alcançar no final a tão almejada paz interior que ela buscava. A quem tenha criticado bastante John Goodman no papel de Harling Mays, mas pra mim ele é o destaque do longa. Impagável como um "amigo que fornece aditivos e quitutes" sua participação nas cenas que antecedem a audiência final está formidável e hilária.
Infelizmente o politicamente correto ainda beira em massa por Hollywood e o final que poderia ser sombrio e realista, Zemeckis se acovarda um pouco e recorre a salvação ordinária nos 45min do segundo tempo, visto que pouco antes ele tinha sugerido que a recuperação de Whip era praticamente impossível, mas relevando isso e outros deslizes "O Voo" é um ótimo filme, levantando indagações sobre a alta destruição que podemos provocar a nós mesmos e uma pá de outros assuntos, inclusive o tanto que o corporativismo pode influenciar na vida de milhares e milhões de pessoas, como visto na reunião entre os advogados, chefes de sindicato e o dono da companhia aérea. O roteiro teve inspiração em uma história real de um piloto canadense que viveu situação similar em 2001, virando também um pica das galáxias da aviação, mas também teve seus dias de luta contra o vício da bebedeira... O detalhe é que ele conseguiu pousar o avião sem estar alucinado e drogado... Vá entender né...
Outra boa atuação de Washington que, na minha opinião, já passou da hora de buscar alguns papéis diferente, que não tragam redenção ou moral em sua background. Um vilão seria bom, mas vilão de verdade, não com em Dia de Treinamento (sua melhor atuação) ou O Gângster. Sobre o texto, tá muito, mas muito bom.