Glórias e derrotas do sonho americano
É a celebração cinematográfica, assinada pelo veterano Clint Eastwood, de uma das bandas americanas mais famosas de sempre. Baseado no musical homónimo de grande sucesso da Broadway que passou por vários outros palcos do mundo, Jersey Boys é uma delícia visual que tem causado opiniões várias e extremas, mas não há dúvida que o filme merece ser descoberto.
Acompanhamos o percurso dos elementos dos The Four Seasons, e todos nos contam, à sua maneira e em monólogos com a câmara, as circunstâncias e problemáticas que rodearam o sucesso e evolução do grupo, começando por Tommy DeVito (Vincent Piazza, da série Boardwalk Empire), um jovem vigarista que dedica parte do seu tempo aos concertos da sua pequena banda. Tommy irá convidar o talentoso Frankie Valli (John Lloyd Young) para se juntar à banda, e mais tarde entrará o compositor Bob Gaudio (Erich Bergen), que será o responsável por muitos dos maiores êxitos dos Seasons. A completar o conjunto está Nick Massi (Michael Lomenda), formando este quarteto uma das bandas mais bem sucedidas da cena musical norte-americana das décadas de 60 e 70.
O regresso de Clint Eastwood à realização faz-se com um filme que, tal como alguns dos anteriores, foi recebido pelo público e pela crítica sem conseguir gerar nenhum consenso. Esta é uma situação que se tem vindo a tornar constante, e alguns dos casos em questão tornam essa tão grande variedade de opiniões num fenómeno interessante (o que se sucedeu com Hereafter – Outra Vida e J. Edgar é disso exemplo). Contudo, talvez Jersey Boys, mesmo que se enquadre numa linha de estilo semelhante a todos os filmes que se sucederam ao magnífico Gran Torino, possa ser visto como um objeto de estudo à parte, diferente dos seus pares.
Isto porque esta adaptação do musical da Broadway é dificilmente associável a outras obras de Eastwood, já que este parece não ser um filme assinado pelo lendário cineasta americano, responsável pelo arrasador western Indomável e pelo conto de crime e relações/perturbações humanas de Mystic River. Apesar de manter alguns elementos fundamentais do aspeto visual e narrativo do seu cinema, como a fotografia de Tom Stern (que colabora com o realizador há mais de dez anos, mais precisamente desde Bloodwork – Dívida de Sangue), os planos, a grandiosa reconstituição de uma época perdida nas memórias de quem a viveu, o relato de uma história tipicamente americana (de sucesso, decadência e crescimento), como outros pequenos mas essenciais detalhes da fita, e que tornaram Eastwood inconfundível no cinema do nosso tempo, Jersey Boys aposta na diferença – e isso pode causar agrado a uns e descontentamento a outros.
É que, no fim de contas, a narrativa aposta num fio condutor convencional. Mas a essa convencionalidade são acrescentados alguns mecanismos que a conseguem tornar mais interessante. É o caso, a título de exemplo, da escolha de múltiplos narradores que contam, na primeira pessoa e na sua perspetiva, os prós e os contras de cada um dos problemas e triunfos com a banda terá que saber lidar (sendo que os quatro membros dos The Four Seasons terão o seu tempinho para desabafarem com a câmara, e aumentarem a proximidade com o espectador). E à forma como se desenvolve a procura pelo sucesso é acrescentada uma interessante simbologia relacionada com o crescimento da música e da sociedade americanas.
E não deixa de ser relevante, e ao mesmo tempo desconcertante, o resultado final que Eastwood faz com estas subtilezas, através de um produto que tem tanto de clássico como de alternativo, ao contar todos os passos de um grupo de músicos e do seu vocalista que ambicionava ser maior do que Sinatra. Há uma forte aposta num tom sarcástico e com uma certa comicidade em relação aos dramas das personagens. Mas em cada cena, a opinião que temos de Frankie, Tommy, Bob e Nick pode ser radicalmente alterada – porque, se Tommy, primeiro narrador do filme (que nos guia pelos meandros de um bairro italo-americano nos primórdios dos anos 50), e que até ao início dos Four Seasons acaba por ser o equilíbrio entre a ingenuidade do protagonista e o mundo de vigarice e egoísmo que o rodeia, já algum tempo depois as coisas mudam completamente, e é ele o desgraçado, dependente da vontade dos seus colegas para suportar os seus atos que acabarão por, em parte, destruir o grupo.
Jersey Boys liga passado e presente quebrando por múltiplas ocasiões a quarta parede e a normal continuação do percurso físico e psicológico das personagens, numa história que reflete as tendências culturais de uma época e os excessos que, infelizmente, não se restringem apenas aos anos 60. E se não conseguimos precisar bem, às tantas, se a história é mais sobre Valli ou sobre os Seasons, também podemos ficar atónitos, ou maravilhados (consoante os gostos de cada um), com a mistura entre o drama e o grande espetáculo hollywoodesco, cheio de glamour, festa e muita música. Ouvimos os êxitos com outra roupagem, mas que se coaduna sempre muito bem com o filme.
O visual de Jersey Boys está impecável, como já é habitual em Clint Eastwood. E o filme, no seu todo – e apesar de algumas incongruências e buracos do argumento -, consegue tornar-se numa peça de brilhante entretenimento, que segue as regras dos clássicos da indústria e que nos faz lembrar como fazem falta mais filmes assim a chegarem às salas. Filmes onde o cuidado técnico e sensorial estão acima de todas as coisas, e apesar das diferentes apreciações que o filme possa gerar, é algo que não consegue ser menosprezado por ninguém.
Sendo um biopic astuto, divertido e, em parte, original, Jersey Boys não interessa somente pelos factos que retrata, como também pelas fragilidades que atribui aos seus heróis (algo também comum a outros protagonistas de Eastwood, que escondem com a atitude um lado mais delicado). Essas figuras tornam-se espectadoras e avaliadoras das suas próprias desgraças, recuando e avançando no tempo e relembrando as vitórias, as derrotas, as feridas e os que ficaram pelo caminho na batalha pelo estrelato, e na luta pela conquista da América. Um exuberante espetáculo emocional e musical, com grandes interpretações, onde a História do rock se confunde com a História de um país, ilustrando todas as armadilhas que isso possa proporcionar.
Excelente texto Rui, tio Clint não decepciona!