Dwight (Malcon Blair) está perdido. Ou melhor dizendo, é um homem perdido, no meio de nenhures, não fazendo nada de jeito na vida. O mau aspecto em que se encontra, com uma barba farta descuidada, reflecte as condições mentais em que se encontra. Passa o tempo entre vagabundices, aproveita uma boa tarde de praia, e acaba por dormir no carro. Depois, dão-lhe a notícia: o assassino dos seus Pais saiu da prisão. É altura de ajustar contas com o passado: as ideias surgem e os hipotéticos planos começam a fervilhar na sua mente descontrolada e insegura. Dwight decide mudar a sua "imagem", parece uma nova pessoa que veio a este mundo. E é mesmo: agora, este Dwight não tem dúvidas sobre aquilo que fez e todas as coisas que ainda quer fazer. Está em acção, mas o medo persiste. Depois, fica descontrolado, já não sabe o que fazer: a vingança está a decorrer, mas onde param os limites de toda esta perseguição fatal, que o envolve na sua própria armadilha manipuladora e inconsequente?
«Ruína Azul» é um filme desconcertante: quem poderia esperar que, numa época dominada pelos mais desinspirados e insuportáveis 'blockbusters', chegasse até nós uma peça surpreendente como esta? É um 'thriller' como tantos outros, mas que consegue ter uma coisa em especial, que partilha com todos os grandes filmes do género: possui um espírito único e uma densidade incrível. Faz lembrar «Blood Simple», a primeira (e maior) obra prima dos irmãos Coen, sem ser necessariamente uma cópia desse filme - e ainda bem, porque o realizador Jeremy Saulnier sabe jogar bem com esta e outras referências cinéfilas, sem se esquecer de criar a sua própria história e um estilo que, se continuar no bom caminho, o pode tornar inconfundível no Cinema moderno. Ambas as fitas têm uma história de vingança, e apesar de seguirem caminhos e situações distintas, o clímax das duas acaba por coincidir num aspecto: a pressão que exerce no espectador é brutal, tal como a aparente simplicidade das suas personagens, cujos segredos e fatalidades acabam por nos esmagar, como se de uma grande e imparável bola de neve (cuja existência só reparámos quando ela já estava demasiado perto para não conseguirmos fugir) se tratasse. E o humor negro não é mais do que um ingrediente que serve, apenas, para temperar esses conflitos e tensões, acabando por não resistir perante tantas faltas de ar que nos consegue provocar. De tudo aquilo que possa ter assimilado entre tantos filmes e realizadores que admira, Saulnier aprendeu com os Coen a melhor lição de todas: a de que o público gosta de ser "mal tratado"... com dignidade, claro está. Como adoramos sofrer - mas calma aí, que a dor cinematográfica tem de ser de qualidade! E este é um caso onde acontece isso mesmo, porque sofremos com as personagens e com a escalada de eventos em que se intromete o nosso duvidoso anti-herói... mas não deixamos de ficar entusiasmados e empolgados com essa mesma catadupa de acontecimentos galopantes.
Não é um 'thriller' que precisa de se gabar, não é um filme que se torna fácil aos olhos de quem o vê, não é um título que se deixe tentar pelo que o espectador preferia ver. Estamos num tempo em que até o mais recente 'reboot' de «Godzilla» é incluído nessa categoria cinematográfica, portanto, não é de admirar que, pelo menos por uma ocasião, surja um caso que se adequa perfeitamente àquilo que institucionalmente o caracteriza - e sendo um grande «thriller', «Ruína Azul» consegue tornar-se, ainda, e citando uma frase tipicamente utilizada pelos nossos amigos americanos, 'one hell of a movie'. É um dos grandes filmes do ano, e uma obra que tem mesmo muito que se lhe diga. Desde a construção do suspense até às grandiosas interpretações, passando pela fria e dura realização e a imaginação de uma câmara matreira, sempre pronta a enganar-nos e a fazer-nos percorrer caminhos muito mais perigosos do que aparentam ser, há aqui muito para admirar. E arrisco-me, até, a fazer esta profecia: Dêem uns anos a «Ruína Azul» e talvez este já seja considerado um filme de culto, um clássico contemporâneo, e poderão vê-lo constantemente a ser incluído entre outros grandes "craques" as mais variadas listas conceituadas de cinefilia. Não que este seja o melhor filme do século... mas é tão bom descobrir que existem, ainda, pessoas que queiram trabalhar o Cinema como merece ser tratado, como... lá está, Cinema. Não sendo totalmente original, porque vai buscar as ideias e estrutura a histórias anteriores, «Ruína Azul» é um filme repleto de originalidade. Porque a "reciclagem" de ideias nada tem a ver com as potencialidades de um filme, já que muitas obras primas caracterizam-se, exactamente, por parecerem - e por apenas parecerem - iguais a todas as outras.
«Blue Ruin» foi feito com cabeça, tronco e membros, e é um filme que nos faz voltar a ter fé no Cinema independente norte-americano (sim, aquele que tem o verdadeiro espírito 'indie', não estou a referir-me a qualquer geringonça, que é tudo menos cinematográfica, que tem aparecido por aí fingindo possuir essa atitude e espírito livres de fazer Fitas, quando de facto, não consegue mais do que um isco fácil para atrair mediatismo a meia dúzia de 'hipsters'). Isto É Cinema, puro e duro, reflectindo aquilo que, durante um período da Sétima Arte, fazia as delícias dos espectadores - e que certos realizadores, como os Coen, tentaram ressuscitar, embora de maneira efémera, em décadas posteriores: o espírito 'noir', a falta de heroicidade plástica do protagonista, o desespero da sua demanda, e os desvios que este tipo de histórias fazem da vida real, e do que pode ser considerado "realista" ou "humanamente credível". No fim de contas, acaba também por filmar as relações familiares e os elos de ligação entre seres humanos de uma maneira que, no mínimo, pode ser considerada como insólita e envolvente. E isto não é entretenimento barato, atenção: «Ruína Azul» manipula, estimula e espezinha as nossas emoções a todo o momento, para depois destruir, completamente, toda a nossa inocência perante o grande ecrã. É isto que fazem os grandes filmes. Precisamos de CGI? 3D? Efeitos especiais de vária ordem? Não, tudo está na silenciosa, e porém arrepiante e perturbadora, essência desta grande descoberta do panorama americano moderno.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário