O novo e muito esperado filme de Wong Kar Wai é uma homenagem a Yip Man, um dos maiores mestres da idade do ouro das artes marciais da China.
Começa em 1936 e avança até aos anos 50, esta espécie de biografia de Yip Man, o grande mestre da arte marcial Wing Chun que influenciou toda uma geração de apreciadores da arte das lutas da China, e que teve a sua idade de ouro precisamente no espaço temporal em que a narrativa cinematográfica se encaixa. Para além de grandes cenas de luta e de uma história que envolve os grupos de artes marciais da China, acompanhamos Yip Man nas mudanças políticas e culturais que o país sofreu naquela época (mais as rivalidades marciais entre o Norte e o Sul), mostrando como é que as artes marciais foram tão importantes para o Oriente nos seus tempos mais conturbados. Começou por ser um lutador que dividiu opiniões no “submundo” das artes marciais chinesas, mas acabou por se impor e ficar na História.
Yip Man tornou-se conhecido mundialmente por ter sido o mentor do lendário Bruce Lee (que popularizou o Wing Chun em todo o mundo) e porque, mais tarde, foi a personagem central de uma série de filmes que exploram, com mais ou menos autenticidade, a sua existência e o seu talento para as lutas orientais (sendo a mais famosa dessas encarnações a película Yip Man, realizada por Wilson Yip em 2008, e que teve direito a um segundo capítulo em 2010). Mas Kar Wai não pretendeu explorar o homem e a sua carreira da mesma maneira que os seus antecessores: quis dar, além da veracidade e da magia da história, o seu toque cinematográfico, que acaba por assentar muito bem a todo o conjunto.
São logo duas as componentes de O Grande Mestre que fascinam o espectador nos primeiros minutos do filme: a sua música envolvente e inspiradora (que vai buscar algumas composições bem conhecidas do meio cinéfilo – como a espetacular partitura de Ennio Morricone, composta originalmente para a obra prima Era Uma Vez na América, e que aqui se ouve quase no final da trama), e a impressionante cinematografia que é um banquete para o olhar, e que tem aquela qualidade inigualável que já nos habituámos a ver em obras anteriores de Wong Kar Wai. E é mais estilo e beleza visual que encontramos nesta fita, do que tudo o resto. As sequências de luta começam por ser apelativas e estimulantes, com o seu toque muito estilizado que vai beber influências de Matrix, mas a pouco e pouco, começam a tornar-se repetitivas.
É que apesar da presença das boas intenções no lado da “pancadaria” espalhafatosa de O Grande Mestre, Kar Wai poderia ter investido mais nesta obra: é notável o lado caricatural de certas cenas repletas de clichés e fórmulas narrativas gastas e/ou supérfluas, que se vêem acompanhadas por algum excesso de estereotipo nas cenas mais importantes de luta que, por não serem muito inventivas, acabam por ser cansativas. Felizmente que o cineasta não quis pontuar esta sua fita apenas por momentos de ação: há espaço para o drama, o humor, a poesia e a criatividade cinematográfica do seu realizador - e estes momentos são fulcrais, porque dão um maior interesse a uma obra que, se vivesse apenas da luta, perderia muito do seu espírito.
O Grande Mestre é um filme que quer seguir, aplaudir e prestar tributo aos grandes clássicos do género, que Kar Wai admira e que, na sua opinião, já não se fazem na atualidade. Talvez seja por isso que alguns clichés sejam suportáveis, porque são auxiliados pelo background que as envolve e pelo estilo inconfundível do cineasta.
Protagonizado por Tony Leung (um ator recorrente nos filmes de Kar Wai – veja-se ou reveja-se o seu magnífico desempenho em Disponível para Amar), O Grande Mestre consegue evoluir e ultrapassar alguns dos seus defeitos ao captar o espectador com o seu lado mais lírico, filmado em contraste com as cenas de ação, e por ter um retrato histórico fiel da China dos trintas, quarentas e cinquentas, focando de forma exemplar os anos da Guerra (e as suas consequências para o povo) e o declínio momentâneo de Yip Man, ao estar no meio de uma rede de conflitos da qual não consegue escapar.
Tem aspetos documentais, bons diálogos e cenas de singular beleza, que elevam um filme que, sem estes mais significantes momentos de Cinema, não se conseguiria destacar tanto. E as interpretações belíssimas de todo o elenco são outro ingrediente-chave, para uma peça de Cinema que, ao retratar o lado mais íntimo da China, tenta abrir a cultura do país para todo o público do grande ecrã.
Ainda bem que Wong Kar Wai não se perdeu totalmente com esta novidade trazida pelo seu Cinema: O Grande Mestre não se resume às lutas, e é acompanhada pelo lindíssimo visual, pela impressionante estética e pelo espírito do cineasta que está tão presente em cada fotograma. Este filme acaba também por entranhar o espectador naquele mundo secreto e obscuro graças aos momentos mais altos da narrativa e de Arte cinematográfica melhor dirigida (e que não se fique só pelo regalo da vista), acabando por dar um interesse curioso ao percurso de uma arte milenar que caracteriza o seu país.
Só no fim da sessão é que poderemos saber o que O Grande Mestre nos conseguiu afinal dizer. E enquanto nos deparamos com as partes menos boas do filme, também vale a pena contemplar com a mesma atenção o lado surpreendentemente sensível desta história (e que, infelizmente, não está presente no “todo” – o que poderia ter sido um auxílio essencial para melhorar a qualidade do conjunto). Wong Kar Wai, apesar de querer inovar o seu Cinema, não consegue escapar às suas marcas de estilo extraordinárias, e ainda bem – são essas pequenas coisas tão especiais que acabam por tornar O Grande Mestre uma estreia peculiar nas nossas salas, e que sem dúvida deve ser vista.
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