Se as obras de Hayao Miyazaki falam da relação do homem com a natureza (situação que é um tanto sutil em, por exemplo, "A Viagem de Chihiro", na convivência da menina com um espírito do rio), em "Princesa Mononoke" esse tema é tão evidente que é impossível ignorá-lo. O mal vem do oeste (uma clara alusão ao imperialismo ocidental) e, sob a forma da poluição, deixa chagas (doenças) nas pessoas e enlouquece os animais.
Os personagens são, sem dúvida, o supra-sumo dessa obra. Destaco aqui quatro deles:
Ashitaka: é a personificação do herói ideal. Escolhe não tomar partido por crer, acima de tudo, no seu senso de moral, o que o faz atravessar os dois lados da guerra e ser odiado, mas respeitado. Evita o conflito, porém mata, com respeito, quando é necessário. Corajoso, ponderado e incorruptível, recebe o título de príncipe (e certamente o é mais do que qualquer príncipe da Disney, que não passam de figurantes) e costura a história.
San: a menina-lobo que dá título ao filme vive numa espécie de limbo, onde seu espírito diz que ela pertence à floresta (onde é bem aceita por alguns), mas seu corpo explicita sua origem humana (e, portanto, contaminadora, segundo a tribo dos macacos - aliás, alguém percebeu uma nítida semelhança entre eles e os macacos-fantasma de "Tio Boonmee", de Apichatpong Weerasethakul?). Sua existência é, por si só, complexa, conflitante e lembra um pouco a situação dos imigrantes em países ligeiramente xenófobos.
Eboshi: é uma vilã intrigante, se é que podemos dar-lhe esse título. Se, por um lado, ela é uma engrenagem-chave na máquina da guerra que move o ocidente (ou seria uma marionete nas mãos do Imperador que almeja à imortalidade?), por outro ela é uma heroína dos fracos. Prostitutas e leprosos são seus protegidos, pessoas que foram vítimas da natureza humana e, agora, se revoltam contra a própria natureza, como que num ato de vingança. Destemida e capaz de tudo, não é difícil, num primeiro momento, criar uma antipatia por ela, coisa que desaparece quando a nossa cabeça esfria. Sua ascensão à liderança é um interessante e sutil feminismo (ainda mais se considerarmos o gênero em que "Princesa Mononoke" se insere, onde, devido a uma tradição patriarcal, os homens costumam ser os líderes).
Shishi-gami: mítico e misterioso, o espírito da floresta é um ser que possui o poder da vida e da morte nas mãos, mas não o usa de forma leviana. Por ser uma personificação da natureza (e por que não da vida em geral?), ele não atende a interesses próprios, nem para salvar a própria vida (quando, na sequência da batalha na floresta, ele poderia ter matado Eboshi com facilidade), nem a vida de seus "amigos" (tal qual fez com o javali branco). Sua aparente passividade nada mais é do que a divindade em essência, algo que não interfere no livre-arbítrio dos mortais e que procura zelar pelo equilíbrio universal (inclusive quando o deus é descompassado quando decapitado, sendo a morte que ele causa uma espécie de purificação para a renovação da vida, como foi parafraseado 3 anos depois no ato final de "Fantasia 2000").
"Princesa Mononoke" é uma animação encantadora. Mais madura e violenta do que outras do Estúdio Ghibli, sua história nos permite reflexões da ordem ecológica à humanística, onde vemos personagens que nada mais querem do que achar um lugar onde possam ter paz, tal qual nós mesmos.
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