O notável senso de humor de Alfred Hitchcock se fez presente em cada um de seus filmes de suspense, seja em diálogos de duplo-sentido ou até em suas aparições-surpresa. O fato também é confirmado em suas entrevistas, seus documentários e até em premiações, como quando proferiu aquele singelo e solitário ''obrigado'' ao receber um prêmio pelo conjunto da obra, ou mais ainda, quando naquela homenagem feita por amigos atores e diretores, mesmo bem velho, tentou esconder o prêmio em seu casaco. Ou seja, senso de humor notável e afiado. Eis que, em sua extensa filmografia, está escondido um despretensioso e divertidíssimo filme de comédia, O Terceiro Tiro. Em uma trama envolta por uma certa atmosfera sombria e misteriosa, ele nos apresenta um humor negro, inteligente e sutil, sem contar extremamente eficiente.
Tudo gira em torno de de um homem chamado Harry, cuja presença vem causando os mais diversos transtornos a uma comunidade próxima. Isso não traria surpresa alguma se ele não fosse um... defunto!! Isso mesmo, e o simples fato de ninguém se importar com ele é o que vem causando tantos problemas.
E a partir dessa premissa um tanto estranha, a narrativa finalmente começa a se desdobrar quando o hilário capitão Albert Wiles, ao tentar apanhar alguns coelhos na floresta, acredita ter assassinado o pobre homem. Tentando esconder o cadáver, é surpreendido pela aparição de várias pessoas da cidade, que por sua vez acabam sendo envolvidas no caso. A Srta. Gravely (Mildred Natwick), descobre e aceita a opção do capitão por enterrá-lo, e ainda o convida para um café em sua casa. Ainda, seu amigo Sr. Marlowe (John Forsythe), um pintor fracassado, decide ajudar no enterro. Mas é somente quando a Srta. Rogers (Shirley MacLaine) entra em cena que a ordem das coisas começam a mudar.
Na primeira cena de interação entre o Sr. Marlowe e a Srta. Rogers, a estreante Shirley MacLaine mostra a que veio. Talvez o melhor momento do filme, com diálogos tão inspirados quanto divertidos como ''trocar a sua mãe pela minha?'' ou ''Harry era... meu marido''. A atriz, que viria ser muito famosa e inclusive ganharia o oscar, interpreta logo em seu primeiro filme o papel que mais se identifica, a de uma mulher apaixonante e meio maluca. Definitivamente, o grande destaque dessa fita.
A trama é constantemente renovada com pequenas inversões, e a cada momento se torna mais engraçada. Por incrível que pareça Harry, mesmo ao ser enterrado e desenterrado várias vezes, acaba desempenhando um papel importante ao aproximar os envolvidos. A união é demonstrada com clareza quando ele é levado para um banho na casa da Srta. Rogers, quando todos se mobilizam para despistar o policial numa sequência hilária. Pelo menos para mim, a maior intensidade cômica foi encontrada na revelação da real causa da morte de Harry.
Em sua proposta, o filme é praticamente perfeito. Enxuto e sutil, a comédia mostra várias características que a uniformizam com as outras realizações deste grande diretor. A fotografia da paisagem de um ambiente natural no outono concede, além de tudo, o equilíbrio entre um tom belo e sinistro. Para exemplificar o perfeccionismo deste realizador ímpar, temos uma árvore artificial feita com folhas pintadas a tinta e coladas em seus galhos mostrada na maior parte das filmagens.
O Terceiro Tiro, traduzido errôneamente de ''Trouble With Harry'' [O Problema com Harry] em o que pode ser entendido como uma jogada de marketing, além de revelar a atriz Shirley MacLaine, data a primeira colaboração de Hitchcock com o brilhante compositor musical Bernard Hermann. Pode ser dito sem exageros que este foi o melhor com que o mestre já trabalhou. Participando também de filmes como Intriga Internacional (1959), Um Corpo que Cai (1958) e Psicose (1960), Hermann cria nesta composição um universo sonoro completamente envolvente, que intercala momentos de comédia com suspense como nunca tinha visto antes. Só posso dizer que, ao fim da exibição, minha reação em relação à qualidade da trilha foi de espanto.
Em suma, esperem encontrar muita diversão inteligente nessa obra menor de Hitchcock. Deve ser apreciada obrigatóriamente por qualquer fã do diretor.
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