Esse não é mais um filme de Tim Burton
Edward Davis Wood Jr. é considerado o pior diretor de todos os tempos. Wood obteve maior destaque na década de 50, quando criou as obras Glen ou Glenda e Plano 9 do Espaço Sideral, esse último considerado o pior filme já feito! O diretor se valia de baixíssimos recursos, tempo bastante limitado, muitos atores de quinta categoria (às vezes nem atores, como Tor Johnson, que era lutador antes de ser chamado pelo diretor), e material não utilizado de outros filmes (como imagens de polvos e cenas de guerra), e tentava encaixá-los em suas obras das maneiras mais capengas possíveis. Entretanto, o título de pior cineasta não impediu o americano nascido em Nova York de ter uma legião de fãs, que cultuam seus filmes, especialmente os considerados piores, o que não deixa de ser uma ótima propaganda, afinal, como Martin Landau diz (na pele de Bela Lugosi): não existe esse negócio de má publicidade.
Tim Burton vai contra a maré e cria a sua melhor obra (a que pode ser chamada de obra-prima) contando a história de alguém que não tinha talento, apenas uma força de vontade enorme embalado em ingenuidade de criança de continuar com o trabalho sobre o qual acreditava ter talento, apesar de todos os percalços, o maior obviamente sendo a total falta de dom para dirigir, roteirizar ou atuar em um filme. Burton nos mostra desde a fracassada estréia da peça de teatro de Wood (Johnny Depp), onde o único elogio da crítica foi o realismo dos figurinos, passando pela tragicômica criação de Glen ou Glenda, A Noiva do Átomo e Plano 9 do Espaço Sideral.
Burton faz de Ed Wood seu melhor filme ironicamente por manter boa distância do estilo que o consagrou, estilo esse interessante por conter certa originalidade, mas que infelizmente foge da essência do cinema. O diretor é mestre em plastificar as histórias, acertando na obscuridade e no tom macabro que elas pedem, mas ao mesmo tempo fragilizando-as justamente por essa estética alegórica se sobrepor demais ao conteúdo. Burton cria espetáculos visuais, mas que enjoam logo devido, principalmente, a sua limitada capacidade de narrar uma boa história. Depois de ver duas vezes o mesmo filme, a sensação que fica é a mesma de ter comido uma lata de leite condensado: na hora é uma delícia, mas depois não queremos ver mais o doce na nossa frente por um bom tempo. Ed Wood é o que pode ser chamado de cinema de verdade.
Não que em Ed Wood não haja toques dos maneirimos de Tim Burton, porém, os aspectos desse filme que comumente assistimos nos outros vem mais de dentro para fora do que o contrário, como resultado natural da própria história que está sendo contada. Wood tinha preferência por filmes de terror e a obra de Burton explora isso mostrando as inoportunas escolhas do elenco feitas diretor, como sua própria namorada sem talento algum, Dolores Fuller (Sarah Jessica Parker), Criswell (Jeffrey Jones), um vidente charlatão e Bela Lugosi (Landau), o eterno Drácula dos anos 30, mas que na época de já era carta fora do baralho. Sem contar o modo sem profissionalismo que Wood tinha de dirigir, achando perfeito qualquer porcaria que filmava e se humilhando perante os mais improváveis patrocinadores (incluindo um açougueiro e a Igreja Batista) para conseguir grana. A bizarrice que se segue devido ao engajamento de Ed Wood nem precisa da mão pesada de Burton.
É particularmente notável como é construída a amizade entre Bela Lugosi e Ed Wood, o primeiro tentando voltar aos holofotes e o segundo tentando chegar a eles. A admiração do diretor pelo ator é genuína (assim como a cômica admiração por Criswell) e Lugosi não quer apenas benefício próprio, ele passa por mal bocados para também ajudar o novo (e talvez) único amigo. Outra construção habilidosa é a que se dá através do fascínio de Ed Wood por Orson Welles, sua grande inspiração. Enquanto os filmes de Wood são tachados como os piores já realizados, Cidadão Kane é ainda hoje considerado o melhor. Entretanto, quando os dois diretores se encontram e Welles motiva Wood a não desistir dos seus sonhos, vemos como Tim Burton foi cuidadoso em não diminuir ou ridicularizar a paixão e o trabalho de Wood perante a genialidade de Orson Welles.
O cineasta conduz tudo com maestria. Em nenhum momento ele distorce a pessoa de Wood, menosprezando ou elevando seu caráter, o que o diretor faz é tratar a personalidade com carinho e sem desleixo, deixando a saga de um homem ingênuo, sonhador e perseverante fluir do modo mais natural possível, sem apelações. Tim Burton parece ter se achado completamente em sua preferência por personagens bizarros e deslocados, o que nesse caso é ainda melhor por se tratar de alguém real, 'freando' certas atitudes do diretor que poderiam prejudicar a obra.
As atuações são outro ponto forte. Johnny Depp usa seu estilo peculiar da melhor maneira possível para encarnar a criançona que era Ed Wood de um modo admirável. Landau é brilhante na pele de Lugosi, mostrando um homem sofrido sob o sistema de Hollywood e que vive do passado, não por menos ele ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por esse papel. Sarah Jessica Parker está bem, engraçada quando deve ser (nesse caso uso as palavras de Orson Welles, que disse que o preto-e-branco sempre ajuda na perfomance dos atores), e Bil Murray, como já era de esperar, rouba as poucas cenas em que aparece, a maquiagem frufru feita no ator o deixou ainda mais cômico e sarcástico.
Filmado em preto-e-branco, Tim Burton habilmente nos transporta para os anos 50. No final o que fica é a impressão que vimos um filme grandioso que deixa proposidatamente espaço para características de filmes B e C, dentro de uma sobreposição muito bem equilibrada. E que no futuro iremos rever e ver mais uma vez, e sem enjoar.
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