[Sean Penn tem atuação brilhante na cinebiografia de Harvey Milk, dirigida por Gus Van Sant]
O Analista de Bagé, célebre personagem de Luis Fernando Veríssimo, tinha uma opinião formada sobre o Fernando Gabeira:
“O Fernando Gabeira me lembra um causo. Lá em Bagé tinha um bolicho chamado Bago´s. Era onde a indiada se reunia pra coçar o saco, tomar cana com pólvora e contar piada de pelotense. Se passasse um homem barbeado pela porta, lá vinham os assobios e os gritos de “Ai, Rosinha”, “Ta passando o bambi”. Mas volta e meia aparecia um moço no bolicho. Bota de salto alto, cabelo mechado, brincos e passinhos de quem não quer peidá. Entrava, ia até o balcão e tomava uma fanta uva com dedinho levantado. E a indiada quieta. Aí o moço rodopiava e saía. E se alguém estranhasse aquele respeito com o veado, ouvia logo a explicação: para entrar ali daquele jeito o cara tinha que ser macho. Muito macho.”
Tudo bem que o Fernando Gabeira não é gay (segundo ele próprio afirmou em entrevista recente à revista Rolling Stone) e que Bagé não fica na Califórnia. Mas o conceito do psiquiatra mais famoso da literatura brasileira sob o parlamentar brasileiro da tanguinha lilás serve perfeitamente como analogia para a trajetória de Harvey Milk, o primeiro ativista gay a fazer história nos Estados Unidos. Em plenos anos 70, época em que ser homossexual ainda era considerado uma doença, Milk um executivo de Wall Street então com 40 anos, abdica de uma carreira estável para viver livremente na Califórnia com seu companheiro Scott Smith. Radicados em São Francisco, eles abrem uma loja de fotografia no bairro Castro que logo se transforma num ponto de encontro do movimento GLS.
Cansado de ver seus amigos espancados e mortos pelas ruas do bairro, Milk decide se candidatar a conselheiro distrital de São Francisco e lutar pelos direitos civis dos homossexuais. Perde inúmeras vezes até conseguir ser eleito com apoio do movimento dos motoqueiros, dos sindicalistas e da terceira idade. Em pouco tempo, destaca-se na câmara legislativa e torna-se braço direito do prefeito George Moscone. Sua ascensão desagrada o conselheiro rival Dan White que num acesso de fúria descarrega o revolver sob Milk e Moscone, tornando-o num mártir da causa gay.
O legado de Milk, um quarentão retraído que sai do armário para lutar e fazer história na política norte-americana foi levado às telas em 2008 pelo diretor Gus Van Sant. Um belo trabalho, diga-se de passagem, já que o diretor consegue equilibrar com competência o tom político e o teor panfletário do filme que obteve oito indicações ao Oscar e entrou na disputa postulante a levar as principais estatuetas. Levou duas: melhor ator e melhor roteiro original. Bastante a vontade no papel do protagonista, o ator Sean Penn comprova mais uma vez o seu talento. O prêmio concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas pela sua atuação não veio ao acaso. Em nenhum momento, o personagem moldado pelo ator soa como herói ou vilão.
Durante as 2h30 de duração do filme, acompanhamos um Harvey Milk predestinado, que passa por inúmeras superações pessoais até chegar ao seu auge. A primeira delas é a idade. Tudo começa no seu aniversário de 40 anos, onde ele conhece e se envolve com Scott Smith, interpretado por James Franco. O companheiro de Milk é bem mais jovem que ele e indaga-o sobre o vazio de chegar à meia-idade sem ter feito nada de especial. A ida deles à Califórnia dá a ele um novo sentido. De executivo nova-iorquino torna-se ser um hippie quarentão.
Ao ingressar na política retoma o visual comportado e passa a liderar manifestações e mobilizar os homossexuais a se articularem politicamente para serem ouvidos. Apesar de ser um excelente orador, ele perde nas urnas e percebe que para se eleger como conselheiro precisa dialogar com os outros segmentos da sociedade. Após inúmeras derrotas, ele finalmente se elege e passa a lutar por mudanças na constituição que vão desde os direitos homossexuais, até políticas públicas para idosos. A visibilidade faz com que tenha que enfrentar grandes figurões da política e da religião na época, entre eles o governador da Califórnia, John Briggs.
Embora instigante, os trâmites políticos mostrados no filme tornam-se um pouco confusos em alguns momentos. Mas nada que atrapalhe. Um ponto forte do filme é a forma sincera como é mostrada a vida pessoal de Milk. Simpatizante da causa gay por questões puramente pragmáticas, Gus Van Sant, literalmente dá o melhor de si para que isso aconteça (e isso não é um trocadilho!). A conturbada vida amorosa do político, marcada pelo rompimento com Smith que não gostava de política e o relacionamento instável com o desequilibrado Jack Lira (Diego Luna) são mostrados sem pudor pelo diretor, o que soa indigesto aos mais puritanos. Para quem assistiu O Segredo de Brodbeck Mountain, Morte em Veneza ou a série A Sete Palmos, as insinuações sexuais de Milk sequer chegam a assustar.
Por mais que detenha elementos suficientes para não ser rotulado, Milk, não deixa de ser um filme panfletário. A todo o momento, o liberalismo versus puritanismo cristão é colocado em evidência pelo roteirista Dance Lance Black, que por ser gay, logicamente puxa a sardinha para sua brasa e não mede esforços para satanizar a “sociedade conservadora”. O assassino de Harvey Milk, Dan White (Josh Brolin) é o próprio esteriótipo do católico fervoroso. Os ambientes em que ele aparece estão quase sempre preenchidos com adereços religiosos.
Apesar da eterna mágoa entre gays e religiosos estar em evidência, Milk é, acima de tudo, um filme sobre a esperança: “É ela que nos dá razão para viver”, repete Harvey Milk em diversos momentos do filme em seus discursos. E isso é algo que não se enquadra apenas ao público GLS. E se na concepção artística a produção de Gus Van Sant sai vitoriosa, o mesmo dá pra dizer da parte técnica, sobretudo da fotografia pálida de Harry Savides (Zodíaco) e a trilha musical estimulante de Danny Elfman. A montagem também é muito boa, mas isso sempre foi o forte nos filmes de Gus Van Sant.
Mesmo que não agrade ao público de Bagé, Milk foi laureado pela crítica internacional e saiu vitorioso na festa do Oscar. Os simpatizantes do filme, com certeza ficaram satisfeitos pelo reconhecimento de Harvey Milk e o seu legado para um público que ainda é marginalizado por uma grande parcela da sociedade.
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