Quando lançou Fanny & Alexander, Ingmar Bergman classificou-o como sua obra derradeira. Uma compilação autobiográfica, na qual se dissolvem todas as suas experiências cinematográficas. A infância do menino Alexander sob a égide opressora dos dogmas religiosos da família configura-se como uma volta às origens do cineasta. Bergman mergulhou fundo nas emoções da criança que um dia foi, cheia de alegrias e dúvidas, de medos e descobertas e com isso brindou-nos um de seus melhores filmes.
De um modo parecido, Federico Fellini fez de Amarcord, o experimento mais autoral da sua carreira. Lançado onze anos antes de Fanny & Alexander, o filme também repousa nas reminiscências do seu criador, só que com mais compaixão e afetuosidade. Mais que uma grande obra, Fellini nos conduz por um mosaico de emoções onde tanto a passagem de um navio quanto um par de peitos grandes transbordam-nos de humor e ternura.
Amarcord -que no dialeto italiano significa “Recordo-me”- registra um ano de acontecimentos na terra natal do diretor, a pequena cidade de Rimini, no litoral da Itália. O período é a década de 30, durante a ascensão do Fascismo no país. Na primeira cena do filme, vemos a transição do inverno para a primavera orquestrada por flocos de neves que começam a derreter. O desfecho se dará de forma idêntica, após o ciclo completo das quatro estações se fechar com as passagens do sol, da neve e das folhas secas. Durante esse período, uma série de acontecimentos ilustrará a trivialidade dos habitantes de Rimini.
E é com a força coletiva desses personagens que o filme atinge sua grandiosidade. E eles são muitos. Todos, muito encantadores e caricatos. Bem ao estilo das pequenas cidades onde todos se conhecem e cada um carrega seu estereótipo. Há o gaiteiro cego que alegra as festividades, o aluno endiabrado que sacaneia os colegas inocentes, a professora decotada e cheia de si, a doida varrida que vaga solitária falando perversidades, a bela da cidade que sonha em encontrar o seu Gary Cooper, a comerciante robusta de seios avantajados, a patrulha militar do duce Mussolini, entre outros.
No roteiro escrito pelo diretor em parceria com Tonino Guerra, não há um protagonista evidente. Desafiando, como sempre, a lógica cinematográfica, Fellini nos desconcerta com um enredo fragmentado onde o único encadeamento lógico das ações é o fato delas acontecerem em Rimini. Mesmo assim, fica evidente o alter-ego do diretor no adolescente Titta (Bruno Zanin).
É através dele e de seu núcleo familiar que se concentram a maioria dos acontecimentos. Dos mais cômicos aos mais dramáticos. Seu pai é um patriarca opressor, mas ao mesmo tempo sensível e honesto. A mãe é uma devota religiosa que controla os ataques de fúria do marido. Deambula também pela excêntrica família um tio retardado mental que só obedece a uma freira anã e um avô flatulento que só pensa em sexo.
Quanto a Titta, trata-se de um garoto comum com sonhos e ambições que ultrapassam as divisas da cidade. Apaixonado por Gradisca, (a bela da cidade, interpretada por Magali Noel, do ótimo Satyricon ), ele vive a sonhar com formas de aproximação de sua amada, representadas no filme por passagens oníricas, que em alguns casos, confunde-se com a realidade. Numas das cenas mais marcantes, ele flerta com a sexualidade de forma inusitada ao mergulhar nos seios da taberneira.
Mais inusitado ainda é o clímax do filme, quando todos os personagens reúnem-se em pequenas embarcações no em alto mar para apreciar a passagem de um grandioso transatlântico pelo litoral da pequena cidade. A situação mezzo-nonsense nos pega de surpresa, mas, como já havia dito, o desempenho coletivo dos personagens é tão bom que mesmo assim nos toca. Brilha também a trilha musical composta pelo mestre Nino Rota que chega ao ápice nesse ponto.
Acima de ser apenas um filme de recordações da infância, Amarcord contém criticidade em suas entrelinhas. Nos 127 minutos de duração do longa, Fellini transpõe com bom-humor o autoritarismo nas estruturas política, familiar e religiosa. Na cena em que a rocambulesca patrulha de Mussolini passa pela cidade, vemos a política do espetáculo protagonizada pelo Fascismo que culmina com uma tragicômica saraivada de balas numa vitrola que emanava um cântico socialista. Nas confissões dos fiéis na catedral, o padre preocupa-se com tudo, menos com o que está ouvindo.
Entre os cânones do neo-realismo e suas convenções de cineasta autoral, Fellini fez de seu último grande trabalho, o mais encantador. Contribuição que rendeu ao cineasta em 75, o prêmio de melhor filme estrangeiro. Prêmio mais do que justo, embora a grandiosidade de Amarcord esteja acima de qualquer premiação.
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