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Críticas

Cineplayers

A subversão de um gênero sob uma perspectiva feminina.

6,0
Na imensidão do deserto de algum lugar (México? Marrocos?), um ponto negro ao longe se agiganta cadenciadamente no enquadramento, revelando a figura de um helicóptero prestes a chegar a seu destino. Dentro dele, além do piloto, um casal exuberante formado por um homem alto, loiro e bem-sucedido por completo, e uma jovem mulher, de lábios marcantes e corpo esbelto, que desfila por aí como se fosse dona da porra toda. Assim que os pés tocam o chão, o casal corre para o quarto e passa a tarde inteira fazendo amor, antes que os desdobramentos do roteiro de Vingança, escrito por Coralie Fargeat (que também dirige o filme), coloque em cheque essa sedutora primeira impressão do casal.

Há um caráter farsesco notável no primeiro ato de Vingança, que me remete imediatamente a Vale do Pecado, de 2013. A garota loira travestida de Lolita, passeando sedutoramente pelos cômodos luxuosos de uma remota e bela casa no coração do deserto, agradando os olhares de seu parceiro, seus amigos e de nós mesmos, os espectadores. Ambos os filmes flertam com o soft-porn, mas o de Schrader não apenas o faz de maneira frontal e despudorada, como consegue articular as relações entre sexo, luxo e ambientação, ligados a uma ideia de gênero, de uma maneira que Vingança não consegue igualar. Pelo contrário: Fargeat, ao se escorar na muleta da metalinguagem, pisca para o espectador, para depois desaprová-lo.

A partir do segundo ato, Vingança muda a chave e subverte pra valer seus personagens. Quando uma série de acontecimentos faz com a jovem Jen seja maltratada e quase assassinada pelos personagens masculinos do filme, o compreensivo e protetor amante se transforma num vilão diabólico e implacável. Mas Jen, por sua vez, de mera sidekick e colírio para olhos alheios, se transforma numa sobrevivente implacável e sedenta por vingança.

Como cinema, é aqui que Vingança me parece mais bem resolvido. Fargeat vai de voadora na verossimilhança e entrega, sem vergonha alguma, uma empolgante trama de payback, regada a lama, suor, sangue e uma quantidade razoável de alucinógenos. Como num videogame, Jen duela contra cada um dos homens que lhe maltrataram e o desfecho de cada batalha é encharcado de violência. Pela história e pela ambientação, é como se Onde os Fracos Não Têm Vez e Kill Bill tivessem tido um filho, com uma baita inclinação ao masoquismo.

O duelo que encerra o filme não poderia ser outro. Jen contra seu ex-amante. A inevitável presivibilidade desse desfecho é compensa pela maneira com que ele é encenado. Existe, nesse momento, uma ideia interessante de ritmo que perpassa toda a batalha final. Começamos por um apreensivo e silencioso plano sequência, que além de deixar o espectador em estado de suspense, é bastante funcional em antecipar por completo o cenário onde esse tão aguardado conflito se dará. Quando o conflito parte para as vias de fato o ritmo aumenta, e ação vai de plano e contraplano registrando os personagens, um de frente ao outro. Quanto mais próximos da conclusão, mais rápidos são os cortes, traduzindo não só a inquietação do espectador, mas também a dos próprios personagens.

Embora funcione bem nos momentos de ação, não apenas deles é feito esse filme de quase duas horas. Havemos de reconhecer que as conveniências do roteiro que passam por cima das lógicas dos personagens enfraquecem, e muito, a experiência geral. Richard, o amante de Jen, é a situação mais preocupante. Sua transição de amante empenhado para esse vilão de Meninas Super Poderosas não convence, e a postura subserviente de seus dois parceiros em relação a ele tornam toda a premissa do filme bastante questionável.

Há ainda uma questão de visualidade que, a modo particular, me incomoda. Ao intercalar sempre planos amplos com close-ups desconexos, alguns de valor até metafórico, o filme perde um pouco do poder que a imagem bruta de um filme de gênero é capaz de produzir, perdendo-se bastante nessa tentativa desnecessária de criar e atribuir significados “profundos” a quaisquer coisas (além de prolongar dispensavelmente a metragem do filme).

Por fim, existe uma tentativa franca de posicionar discursivamente o filme dentro do que parece ser consensualmente definido como feminismo de quarta onda – muito associado ao uso que o movimento feminista faz das redes sociais. Daí a ideia de Fargeat em subverter o sub-gênero do cinema que é o rape-revenge film a fim de empoderar o feminino nesse contexto cultural e cinematográfico historicamente voltado ao prazer estético masculino. Pra dar cabo a essa ambição, a diretora coloca em jogo questões pertinentes ao debate, em especial o male gaze, cunhado pela teórica do cinema Laura Mulvey em 1975 com o ensaio “Visual Pleasure and Narrative Cinema”.

O ensaio de Mulvey se preocupa principalmente com os filmes da hollywood clássica, mas não é difícil perceber como a representação feminina enquanto objeto para o olhar masculino é uma problemática que se estende – e de maneira ampla, vale dizer – até os dias de hoje. Dessa forma, Vingança parece um pouco carregado com auto-indulgência, como se quisesse abraçar na totalidade essa questão, sem perceber que, talvez, não desse conta. 

Acho importante pontuar, também, que embora historicamente o subgênero do rape-revenge seja regado a doses cavalares de misoginia, existem vários exemplos de filmes que propositalmente buscam subverter esse caráter sexista tão lugar comum, e colocar em pauta o papel do feminino nesse contexto feroz, como Thriller – Um Filme Cruel, Sedução e Vingança ou o próprio Kill Bill. Todos filmes dirigidos por homem, porém, o que certamente coloca Vingança, dirigido e escrito por uma mulher, numa outra dimensão.

A meu ver, as questões de gênero que Vingança busca discutir ou são mal executadas ou atrapalham a experiência do filme enquanto cinema de gênero. Embora eu, enquanto homem, não seja a pessoa mais apropriada para falar disso. Em outros níveis, o filme funciona pra caramba nessa perspectiva de um exemplar de gênero, embora seja meio vacilante, principalmente no primeiro ato e na construção dos personagens. O apreço pelo trabalho de estreia de Coralie Fergeat deve variar pelo tanto que a pessoa se interessa, ou não, pelas discussões que têm espaço nas rede sociais, e a maneira pela qual esses debates devem entrar em pauta no cinema.

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