1,0
Numa estação de trem, a câmera acompanha a caminhada de um homem, aparentemente. Calça branca, camisa jeans, uma bolsa de viagem. É construído um clima de tensão através da trilha-sonora e do rosto não-revelado do alvo da imagem. Paralelo a isso, um carro conversível carrega três amigos sorridentes em alta velocidade. Jovens e bonitos, o provável protagonista narra essa passagem rápida para entendamos como eles se conheceram. O novo longa de Clint Eastwood promove uma leitura de uma história que poderia ser banal e se tornou espetacular pelo acaso. Os personagens narrados acima estarão todos no mesmo trem rumo à França, quando um ataque terrorista ocorre. Entre culpado, inocentes e um grupo de rapazes que será testemunha ativa dos eventos, o veterano diretor adapta o livro escrito pelos três jovens que estavam mesmo dentro desse trem, que ele promoveu também a protagonistas do seu filme, numa tentativa que tinha muito para dar errado - e deu.
Sem muito enfeite técnico a adornar seu produto (a bem da verdade, esse não é um interesse do cinema de Eastwood), o diretor volta a intercalar os fatos de um evento real como nos seus longas anteriores, Sniper Americano e Sully, que provavelmente formam uma trilogia com esse aqui sobre o heroísmo hoje e as fraquezas que arranham essa superfície. Três histórias reais, ambientadas e em circunstâncias completamente diferentes, onde ele já tinha pincelado uma guerra que desdobrava interna e externamente com um soldado, um salvamento de um desastre aéreo por um piloto de carreira, e aporta agora no terrorismo fora da zona de combate. A forma como ele observa cada um desses episódios e o modo de traduzir o estado interno dos seus personagens-título anteriores tinham alcançado resultado de diferente reverberação, em processos mais e menos bem sucedidos, e que aqui encontram uma série de empecilhos para almejar repetir a qualidade de qualquer um dos dois. A verdade é que seu novo filme talvez seja o mais repleto de falhas narrativas e desacerto de ideias, e eu não estou citando somente essa trilogia do heroi moderno, mas dentro de toda a carreira desse grande cineasta.
Ao dividir o roteiro de sua assistente Dorothy Blyskal numa salada de três frentes (a infância dos soldados, o ataque terrorista e... uma turnê pela Europa a título de turismo!), Eastwood precisaria ao menos criar interesses individuais por cada uma dessas passagens. Pois bem, o trio de crianças é imerso numa pregação cristã religiosa que tem função quase de convertimento; a turnê Itália/Alemanha/Amsterdam rende um sem número de cenas que não fazem nenhum sentido e não complementam em nada a narrativa, pelo contrário, afasta do mote principal da construção do herói que ao menos está colocada nas outras duas e praticamente só serve para vender pacotes turísticos, de tão óbvias que são as imagens, os lugares e as situações; por fim, o ataque terrorista mais sem tensão já visto, rápido, quase limpo, e que deixa clara a procura da ação em outros tempos e cantos, afinal não havia material para um longa ali. Em comum, os três segmentos têm a absoluta falta de interesse para os unir, em cenas que, ou são muito mal dialogadas, ou dirigidas sem qualquer capricho.
Resta o clichê absoluto que une todas as sequências. Desde a infância, quando as crianças frequentam um colégio católico "que molda seu caráter" (e que é um lugar de onde só se faltou o calabouço para parecer um castelo da madrasta), até a fase adulta, onde os personagens tomam decisões para mudar suas vidas em segundos e proferem frases desse nível a todo momento: "eu sei que precisamos ir a Paris, o destino nos empurra até lá".
Óbvio que poderia ser tudo amenizado se o elenco escolhido fosse bom, mas... perai, os soldados são os próprios atores. Pois é... se preciso explicitar esse aspecto, digamos que chamaram duas crianças cujo talento nada deve aos adultos, havendo ao menos uma coerência na atitude. Não cito três crianças porque um dos meninos é o pequeno Bryce Gheisar, que já tinha encantado em Extraordinário e aqui continua funcionando, pena que suas falas são horríveis como as de todo o filme. Lá pelas tantas, ao percebermos que dois dos adultos envolvidos nas cenas infantis têm ligação com o universo cômico (Judy Greer e Tony Hale que vivem respectivamente a mãe do protagonista e o diretor da escola), chega a tentar levar uma reflexão de se Eastwood não estaria debochando desse universo cristão que retrata, mas essas passagens são vendidas de forma melodramática, com trilha suave de fundo e olhares marejados, logo fica claro que o diretor acredita nelas. E o filme ainda abraça a religião como solução narrativa quando seus personagens passam a obedecer os conselhos do religioso diretor sem qualquer questionamento, deixando claras as intenções doutrinadoras do filme.
Diálogos ruins, roteiro ruim e esquemático que divide a narrativa entre três passagens injustificadamente, e uma direção que nunca avança para além da burocracia, uma escolha de elenco que não funciona como aparato cênico ou dramático, isso tudo depois de dois filmes bem sucedidos (em construção narrativa de um lado e em resultados práticos e monetários do outro). Fica a impressão de que absolutamente tudo deu errado no longa. Como reagir quando um filme não se justifica ou funciona nem na leitura dramática nem na leitura estética, isso vindo de um cineasta que sempre teve algo a dizer, mas que parece ter se acostumado aos altos e baixos na última década? Perplexidade é a resposta. Dois pontos positivos da experiência de assistir 15h17: a curta duração que encerra o filme em 1 hora e meia, e a certeza de que o próximo filme de Clint Eastwood não precisa de praticamente nada para ser superior.
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