8,0
Foi o cineasta e escritor Jean Cocteau que afirmou, mais ou menos nesses termos, que o cinema só seria uma forma de arte na acepção mais ampla quando o material que os realizadores dependessem para fazer seus filmes fosse tão acessível quanto é a pena ou o pincel para literatos e pintores. O constante e progressivo barateamento dos custos e meios de produção que aconteceu no decorrer de todo o cinema moderno, por outro lado, gerou infindáveis rebentos a fazer qualquer coisa nem sempre relevante com uma câmera sobre os ombros ou à simples altura dos olhos, num desperdício de oportunidades e facilidades.
Por profissionais que sejam as realizações do sul-coreano Hong Sang Soo, é a ele que remete de maneira fulgurante e positiva a definição mais acima. Os filmes de Hong fluem e se fazem em grande quantidade, como equivalentes a uma produção em série originada das mãos de um pintor em seu ateliê, ou do músico a delinear as partituras de suas obras. Filmes aos quais sobram harmonia, beleza, variedade, melodias e cores.
São vinte e cinco em duas décadas, dezoito nos últimos dez anos. Não é o primeiro nem o maior exemplo de diretor prolífico na história do cinema, porém em termos de temática a sua filmografia prossegue como um universo fechado e ao mesmo tempo sempre em expansão, como se acompanhássemos episódios de várias temporadas de um seriado com personagens diferentes episódio a episódio, num circulo fiel a esse universo perseguido pelo cineasta, ainda longe de apresentar sinais de esgotamento. De um prazer estético e dramatúrgico sempre renovado e com algo novo. As comparações com seriados terminam aqui: por maiores que sejam os esforços de muitos em defender que a televisão de nossa época pode ser igual ou superior ao cinema, os filmes de Hong em nada contribuem para confundir ambos os veículos. Ainda bem.
Na Praia à Noite Sozinha poderia ser o filme em que o diretor mais se expõe, por invocar o caso extraconjugal com a atriz Kim Min-hee, de presença constante nos seus filmes recentes, o que provocou escândalo envolvendo a esposa do realizador. Hong, entretanto, esquece-se de si mesmo, e se dedica à sua musa, reimaginando-a na pele de Younghee, uma jovem atriz à espera do amante, que pode ou não aparecer (”Ele sabe onde me encontrar”). Um filme sedutor desde o prólogo, com Younghee na sacada de um apartamento, em Hamburgo (Alemanha), com a amiga mais velha também sul-coreana e de desejos reprimidos que parece confinada a uma cela particular.
Duas formas de solidão que se encontram, é o que o filme vai nos mostrar, ainda que uma sufocando menos suas paixões, e não hesitando em sonhar e esperar por elas. É o mínimo que a vida parece lhe exigir. A prisão de Younghee parece ser a da superfície de sua beleza, que tantos incômodos e ilusões podem lhe trazer, como efeitos colaterais de uma grande benesse, e aqui o contraste com a amiga sem atrativos no começo sugere ponto de partida para o que ainda vai adquirir maior ressonância.
Em tempos que parecem tomados pelo politicamente correto, Na Praia à Noite Sozinha mostra sua protagonista fumando compulsivamente, ou bebendo bastante cerveja com amigos na segunda parte (de volta a Coréia), ou ainda beijando uma outra amiga numa reunião fraternal. Nunca como uma provocação ao espectador, com uma placidez não só no filmar, mas em como seus corpos se movem e na elegância com que dialogam. Conversa-se sobre o amor, o envelhecimento, a iminência da morte. Não se distingue a ação dos diálogos; aqui, toda ação se dá com um falatório que nunca é desperdício ou supérfluo, mas uma soma a mais ao conjunto de elementos mesmerizantes no universo cinematográfico de Hong. Exceção às cenas de Younghee em seus passeios frente ao mar, só ela e a própria realidade, na sua totalidade, e no conjunto de suas possibilidades finitas ou infinitas, como a enxergar-se a si própria sem mediação ou subterfúgios urbanos ou da contemporaneidade. A natureza que restaura energias é também a que escancara o próprio ser. Há muitos exemplos no filme além das cenas na praia, com o aproveitamento de bosques e outras paisagens minimamente idílicas em meio ao que o espaço das metrópoles permite.
É comum na sabedoria tipicamente oriental uma filosofia de saber olhar para si mesmo, para o cotidiano, e para a natureza ao redor que sugere nos esmagar e acolher como uma ameaça sempre presente e ao mesmo tempo tão confortante. Por mais justificadas que sejam as comparações com Eric Rohmer e John Cassavetes (e é bom que em cada época exista um cineasta que faça jus ao estilo de cinema imortalizado por esses dois realizadores, posição que o sul-coreano desempenha com imensa dignidade), a essência do cinema de Hong está presa sobremaneira a influências culturais e humanas do continente em que vive. Daí sua filmografia se impondo mais rica aos nossos olhos a cada titulo com que nos presenteia. Poucos cineastas contemporâneos conseguem utilizar tão bem a vida como matéria-prima na hora de fazer ficção. A rotina pode ter suas dores e decepções. Mas ela também tem seu encanto.
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