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Críticas

Cineplayers

De recorte em recorte.

6,5
Há uma paisagem idílica captada por uma câmera que se cega momentaneamente com um raio de sol que bate de frente contra ela. O contorno ao fundo é o de um casal rodopiando sobre a pradaria, aos beijos e abraços, mas também muito distantes um do outro e reflexivos, conforme é revelado pela montagem paralela que subitamente oferece um plano fechado de seus rostos, que parecem esconder uma profunda tristeza que põe em questionamento a verdadeira natureza daquela relação. A narração em off tira qualquer dúvida sobre as condições daqueles dois corações: eles não conseguem se comunicar, há algo faltando entre eles e o cenário belo e a situação romântica não são capazes de suprir esse aparente vazio. 

Desde que retornou com A Árvore da Vida (The Tree of Life, 2011), o cineasta Terrence Malick rompeu de vez com seu cinema narrativo de outrora e se voltou para algo mais experimental e contemplativo. Desde então, seus filmes têm seguido à risca a fórmula descrita no primeiro parágrafo deste texto, que pode ser também a descrição de alguma passagem de seu novo trabalho, De Canção em Canção (Song to Song, 2017). Claro que se trata de uma mudança em sua forma, mas não em seu conteúdo: no fundo, ele ainda está interessado por histórias de amor e por casais errantes tentando se acertar, mas que invariavelmente acabam engolidos pelas situações ao redor. Mas se em seus últimos trabalhos esse tema e modus operandi não passaram de variações anêmicas do que foi tão bem desenvolvido em A Árvore da Vida, aqui em De Canção em Canção temos o plus de um fundo musical que faz a ideia valer a pena. 

Tudo se passa na cidade de Austin, no Texas, conhecida como a capital mundial da música ao vivo e local que abriga diversos festivais importantes, além de terreno neutro onde diversos gêneros musicais convivem bem – seja coutnry, blues, folk, pop, new wave, rock, punk e até o latino-americano. Neste palco onde se cruzam tantas lendas da música e tantos aspirantes, Malick narra as idas e vindas de um quarteto amoroso cheio de altos e baixos que só encontra alívio e euforia quando em contato com o som. Há um quê de Nashville (idem, 1975), de Robert Altman, dentro dessa ideia de mosaico de personagens interagindo durante um evento importante no cenário musical norte- americano, mas o foco de Malick é mais intimista e o diretor procura aos poucos desvendar a personalidade de cada um. Em De Canção em Canção, Austin é um personagem próprio e ele rima com oportunidades, com novos começos, com fama, com descobertas, com possibilidades infinitas e com liberdade, e cada qual desse quarteto procurará um ou mais desses objetivos. 

Aos poucos, conforme desenrola sua fórmula já cansativa de belas paisagens amparadas por uma sussurrante narração em off, Malick pincela as variações e as nuances de cada personagem com o amparo de um gênero musical específico. Enquanto Faye (Rooney Mara) tem suas inquietações e constante necessidade de novidades projetadas no punk, Cook (Michael Fassbender) já se encontra no topo da carreira musical e por isso é rodeado de temas de bandas e artistas já consagrados, como Iggy Pop. Da mesma forma, o sentimental BV (Ryan Gosling) tem o respaldo de uma trilha retrô e romântica que traduz muito bem sua natureza passional. Um fio condutor nessa salada de gêneros é o blues Rollin’ and Tumblin’, tantas vezes já regravado e aqui no filme sendo usado em diversas versões, incluindo a de Bob Dylan.

Algumas personalidades da música americana inclusive participam como atores, não somente nas tomadas que o diretor faz dos festivais em Austin. Patti Smith é a mais notória delas e faz uma participação quase espiritual, guiando Faye em seus caminhos e a orientando quanto aos obstáculos de se conciliar a carreira e a vida amorosa. Para além dessas intervenções, Malick se faz presente com seu cinema voyeurístico, mais voltado para imagens do que para diálogos, através de recortes rápidos e frenéticos de momentos isolados na vida de cada personagem, pulando tempos e espaços e depois recuperando eles no ar sem muitos avisos prévios. A falta de conciliação narrativa linear entre esse fluxo de imagens reforça a dificuldade de comunicação e entrosamento que castiga cada um deles e os impedem na formação de qualquer laço duradouro, despindo aos poucos cada um de seus escudos e máscaras. Se em filmes anteriores Malick parece tentar captar o invisível, porém palpável, que se encontra e distancia esses corpos, aqui ele preenche o não visto com a música, e o resultado, ainda que não de todo eficiente, pode ser muito tocante e libertador. 

Comentários (2)

Ravel Macedo | sábado, 15 de Julho de 2017 - 03:43

Malick já se entregou totalmente a abordagem, e sempre funciona, incrível como há muita matéria palpável em meio a toda divagação ao ar. Mas depois de Three Of Life pelo menos pra mim não funcionou, descambou pro tédio mesmo. Aqui ele mostrou que tem o que explorar ainda no estilo, principalmente na parte sonora, fora os personagens bem mais fortes do que nos filmes anteriores (personagem de Fassbender é incrível). Gosto do filme, ainda nada comparado aos grandes Malick, mas bom filme.

Samuel Otávio | sexta-feira, 21 de Julho de 2017 - 10:34

Malick sempre uma experiência profunda e arrebatadora. "De canção em canção" é belo, poético e sensivelmente construído com uma trilha sonora envolvente.

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