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Críticas

Cineplayers

O surrealismo do passado.

9,0
Alejandro Jodorowsky não é um juiz de valores. Suas histórias passeiam do intimismo mais profundo de sua personalidade ao humor escrachado de sua existência, mas sempre com a expectativa de entender e apreciar o máximo de suas relações e comportamentos alheios. Desde os seus primeiros projetos fílmicos, nas décadas de cinquenta e sessenta, até os mais recentes, o chileno mantém seus maneirismos eloquentes que, por menos lúcidos esses possam aparentar, são trabalhados através do surrealismo e ao lado da metáfora poética, criando uma ponderação de intensa e transparente ideia narrativa.

Em Poesia Sem Fim (Poesía sin fin, 2016), seu longa-metragem mais recente e continuação direta de A Dança da Realidade (La danza de la realidad, 2013) – película que conta de forma biográfica ficcional seus primeiros anos de vida, o convívio com sua família autoritária, suas relações pessoais e o vínculo inevitável de amor pela arte -, Jodorowsky já não é mais uma criança. Fora de sua cidade natal, com os hormônios à flor da pele e cansado do jeito ditatorial do pai, ele decide fugir de casa e dedicar sua vida exclusivamente à poesia. Ao cortar a convivência com familiares e, literalmente, sua árvore genealógica, o nosso protagonista sente falta de sua mãe, um alguém imensamente manipulado pelo marido, que em suas falas lança lindas prosas com teor musical, como uma missa em formato de réquiem e que, sempre quando dialoga, faz com que uma sinfonia cômica tome conta da trilha. Alejandro enxerga em sua mãe uma figura boa, reconfortante, esperançosa, mas que, por conta do autoritarismo patriarcal, tem o seu brilho ofuscado. Porém, desde muito jovem, o poeta entendeu este ciclo, e por ser movido pela arte e ter consciência de que se não seguisse este meio de ofício viveria sob uma máscara, ele fez sua escolha. 

A maioria das pessoas da nova cidade, das horas matutinas, estão mascaradas, transparecendo como uma massa de manobra para o sistema, uma vez que este veículo traz a tal e distante aceitação social; e este elemento alegórico, mesmo com o intuito de não julgar a singularidade humana, é retratado na totalidade da obra com um tom irônico, expondo o ser genérico, generalizando um conglomerado, um levante questionador sobre a falta de tentativa e o medo do erro.

O ser noturno é retratado com uma maior nitidez. Sempre com discernimento sobre seus atos, estes formam os vultos do passado de Alejandro. Após algum tempo em uma galeria apresentada por seu primo homossexual, criando fantoches e histórias baseadas nas obras de Nicanor Parra, o poeta decide sair para o mundo exterior. No bar, conhece uma mulher e logo ela se torna sua primeira paixão e contato sexual. Interpretada pela mesma atriz que faz sua mãe, Stella Díaz Varín é uma mulher dura, forte e idealista, o oposto de sua progenitora – e essencial para o crescimento de Jodorowsky.

Qualquer passagem descrita é um compromisso que o diretor pactuou-se a contar sobre sua vida. Nunca questionado sobre a veracidade dos acontecimentos, o chileno se sentiu solto para retratar o passado de sua existência da maneira mais surreal imaginada, cheio de exageros propositais e metalinguagens eximiamente bem pensadas. O filme prolifera para um ritmo de constância climática; com o progresso narrativo e a explanação de ideais em amadurecimento, um conflito de personalidade e o antagonismo de seu cerne surgem em sua mente. A ética de seus atos é a todo momento interrogada por si mesmo e, opondo-se ao modus operandi, Alejandro não está contente com a atual situação de sua vida. O futuro é incerto em seu estado de vivência, o conformismo retratado em uma criança inocente no longa anterior se transforma numa rebeldia de espírito num jovem adulto já com seus interesses formados.

Confrontado por momentos trágicos que ocorreram em sua família e assombrado por possibilidades casuais de prosseguimento de vida, o poeta está a um passo de largar seu estado de conforto. Chorando pelo passado e dançando para um futuro, o estopim iminente converte-se em realidade: Ibáñez se torna o presidente do Chile, governo que recebe críticas extremamente pesadas do diretor, associando-o com uma das ditaduras mais árduas da história; e esta, pontualmente, se transfigura como a única opinião política no filme. Decidido a se mudar para Paris, Jodorowsky parte deixando tudo que havia construído para trás; as memórias transformadas em papelões metafísicos em sua alma.

A narração metalinguística é um meio emocionante de demonstrar os momentos melancólicos de sua partida. Neste término, ele finalmente consegue enfrentar seu pai e, pela primeira vez em dois filmes, a pessoa interfere no personagem; o arrependimento toma conta, a ética sistêmica transborda de uma mente experiente – o pedido de perdão a um ser póstumo reflete as cenas finais. O barco, cada vez mais longe da baía, dissolve todo conteúdo material; a neblina, gradativamente, se acentua no horizonte, não há mais o que observar. Por fim, Alejandro se vê livre de tudo, pronto para preencher um livro vazio.

Adan Jodorowsky, que protagonizou e compôs a excelente trilha sonora, entrega uma atuação cheia de perspicácia, entretanto, são Brontis Jodorowsky, interprete de seu pai, e Pamela Flores (Sua mãe / Stella Díaz Varín) que roubam a cena – assim como fizeram na obra-prima A Dança da Realidade. A simplicidade técnica nessas duas produções é, possivelmente, um dos propósitos idealizados por Jodorowsky. Por retratarem o início de sua vida, sua ingenuidade e pouca ambição, são feitos com uma cinematografia bem fechada, claustrofóbica - ainda que contêm, em certos momentos, elementos megalomaníacos -, diferente de A Montanha Sagrada (The Holy Mountain, 1973) e El Topo (idem, 1970), seus trabalhos mais conceituados. Alejandro, em uma entrevista recente, disse que pretende fazer mais três filmes sobre sua vida. Com quase noventa anos, o chileno pretende voltar a frequência dos anos setenta e oitenta; esperamos que sua saúde colabore.

"Sentir el despegue del pasado, 
aterrizar en un cuerpo de adulto, 
soportar el peso de dolorosos años, 
pero en el corazón conservar al niño."

Visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Comentários (4)

Declieux Crispim | sexta-feira, 04 de Novembro de 2016 - 15:02

Baita crítica. Quero muito ver.

Darlan Pereira Gama | sábado, 05 de Novembro de 2016 - 07:03

Sem dúvidas o melhor crítico com mais de 130 Kg

André da Cunha Sampaio | sábado, 05 de Novembro de 2016 - 11:33

"Sem dúvidas o melhor crítico com mais de 130 Kg"
Talvez pq seja o único.

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